Imposto sobre as grandes fortunas pode não ser a melhor escolha para o país

Cleveland Prates

Economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP. Foi Conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e secretário-adjunto da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.

09/12/2020 04h00

Na última sexta-feira, dia 04/12, o Senado argentino aprovou um imposto temporário (Ley de Aporte Solidario y Extraordinario), com características de Imposto sobre Grandes Fortunas (ver: El impuesto a la riqueza ya es ley, pero advierten que se terminará definiendo en la Justicia). De acordo com o texto aprovado, este imposto começará a incidir com uma alíquota de 2%, sobre aqueles que tenham patrimônio no país superior a algo em torno de US$ 2,45 milhões, e chegará gradativamente até a 3,5 %, para aqueles que tenham mais de U$ 37 milhões. Já para os cidadãos argentinos que tenham patrimônio no exterior essa alíquota ficará entre 3,0 e 5,25%, salvo decidam repatriar 30% do total que esteja fora do país.

É fato notório que a Argentina tem sido um ótimo exemplo do que não se fazer na área econômica. Não por outra razão, o país se encontra em um grande buraco, mergulhada novamente em uma crise econômica com fortes restrições cambiais. E esta decisão, longe de resolver os problemas estruturais vivenciados no país, tem tudo para criar uma enxurrada de processos judiciais na justiça argentina e gerar uma arrecadação muito menor do que o esperado pelo governo. Sem falar que se o imposto virar permanente, poderá agravar a crise cambial em curso, principalmente com o Uruguai ao lado.

Mas o que mais me preocupa nessa história é ver que já há políticos por aqui dizendo que a Argentina está dando o exemplo, e que o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) seria um caminho para redistribuir renda no Brasil. Na minha visão, este é mais um “canto da sereia“, como tantos outros discursos que colidem com a realidade dos fatos.

Ao afirmar isso, não estou negando que tenhamos um problema sério no país. É verdade que nossa distribuição de renda é uma das piores do mundo. Também é verdade que nosso sistema tributário é extremamente regressivo, agravando substancialmente a situação. Mas não se resolve problemas complexos em economia com soluções simplistas. Ao contrário, a depender da maneira como este imposto for implementado, corre-se o risco de agravar a situação e tirar o foco do que realmente é relevante.

Em geral, o principal argumento contrário ao IGF é o da fuga de capitais do país. Isto porque os ativos financeiros, principalmente os de elevada liquidez, podem rapidamente ser retirados do país e transferidos para outras localidades, criando o que tenho chamado de “efeito Gérard Depardieu” (lembrando do ator francês que mudou seu domicílio fiscal para a Rússia depois da proposta de elevação do IGF na França).

Mesmo o patrimônio de menor liquidez (imóveis, por exemplo), pode, no médio e longo prazo, ser transformado em moeda estrangeira, gerando um efeito similar ao dos ativos financeiros. Obviamente esta saída de capital será tão maior quanto mais elevada for a alíquota do IGF e ampla sua base de incidência. Mas a alternativa – a cobrança de alíquotas baixas sobre uma base menor – pode não cumprir a função de justiça social redistributiva, criando um dilema não trivial.

Mas ao meu ver, o problema mais relevante é o destacado em estudo da OCDE de 2018 (veja mais: The Role and Design of the Wealth Taxes in the OECD), cuja análise realizada procurou responder se um imposto sobre a riqueza é a maneira mais eficaz de fazer isso. A conclusão foi a de que, tanto da perspectiva da eficiência quanto da equidade, há argumentos limitados para se defender um imposto sobre o patrimônio líquido (equivalente ao IGF), inclusive pela sua complexidade de implementação, possibilidade de falseamento do patrimônio (inclusive sonegação) e eventuais distorções geradas em termos de incentivos econômicos.

Ademais, sua administração implicaria resolver questões bastante complicadas, como o risco de incidir em bitributação, a maneira de isentar ativos que geram renda produtiva, a forma de estimar o valor de determinados ativos de difícil avaliação, etc.

Muito por tudo isso, hoje somente 3 países da OCDE (Espanha, Noruega e Suíça) ainda fazem uso deste imposto de maneira mais ampla, mas sua arrecadação é muito pequena quando comparada ao PIB do país (algo entre 0,2 e 1%).

Apenas para se ter uma ideia do potencial alcance deste imposto, o nosso Bolsa Família em 2019 correspondeu 0,4% do PIB e o gasto com auxílio emergencial neste ano deve chegar a 5% do PIB. Em outras palavras, contar com este imposto para resolver o problema da distribuição de renda é um discurso fácil, mas de pouca efetividade para o objetivo a que se propõe.

Seria mais importante, por exemplo, gastarmos nosso tempo discutindo uma verdadeira reforma administrativa, que permitisse poupar recursos do Estado para, inclusive, ampliar um programa mais consistente de redistribuição de renda. Mais ainda do que isso, deveríamos estar concentrados em uma verdadeira reforma tributária, que desonere o consumo e compensasse este efeito com a definição de um imposto sobre a renda mais progressivo.

Note-se que apesar do imposto sobre a renda guardar similaridade (sobre quem incide) com o imposto sobre a riqueza líquida (equivalente ao IGF), este último tende a gerar mais distorções e ser menos equitativos, na medida em que incide independentemente do retorno real que os contribuintes obtêm com seu ativo.

No mesmo bojo da reforma tributária, se o objetivo é ampliar a taxação sobre os mais ricos, há vários impostos sobre o patrimônio que podem ser utilizados de forma progressiva e de maneira a induzir um uso mais eficiente dos ativos. São exemplos o IPVA (Imposto sobre Veículos Automotores), o IPTU (Imposto sobre Propriedades Urbanas) e o ITR (Imposto sobre Propriedades Rurais).

Aliás, devemos lembrar que, por uma interpretação jurídica do Supremo, o IPVA não incide atualmente sobre embarcações e aeronaves, que são, em geral, propriedade dos mais ricos.

Finalmente, quando comparamos com a experiência internacional, percebemos que há muito espaço para elevar de maneira progressiva o ITCMD (Imposto de Transmissão Causas Mortis e Doação), que incide sobre heranças e doações. Me parece que esta também é uma forma muito mais justa de transferir renda, principalmente porque quem recebe o patrimônio acaba não sendo quem trabalhou para adquiri-lo.

De toda forma, se resolvermos colocar em prática o IGF, há que se lembrar que os agentes econômicos sempre reagem a incentivos. Nesta linha, se o IGF for combinado com imposto sobre a renda (principalmente sobre o capital de base ampla), sua alíquota deve ser bem baixa e cobrado apenas dos muito ricos efetivamente, para evitar a imposição de cargas excessivas e, consequentemente, a fuga de capitais. Ademais, seria fundamental olhar para as recomendações gerais da OCDE, que têm por base a experiência europeia.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://economia.uol.com.br/colunas/cleveland-prates/2020/12/09/imposto-sobre-as-grandes-fortunas-pode-nao-ser-a-melhor-escolha-para-o-pais.htm

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