Mistério da faísca em bateria de carro ajuda a entender até buracos negros

Daniel Schultz, Monica Matsumoto e Shridhar Jayanthi

sobre os colunistas

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. É formada em engenharia pelo ITA, doutora em ciências pela USP e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é agente de patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO). Tem doutorado em engenharia elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de engenheiro de computação pelo ITA. Atualmente, trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Guilherme Pimentel*

04/05/2021 04h00

O universo é feito de dois constituintes básicos: matéria e forças. Sabemos da existência de cinco forças fundamentais: eletromagnetismo, gravidade, as forças nucleares forte e fraca, e a força de Higgs. Em uma série de colunas, vou explicar o que ainda não sabemos sobre cada uma dessas forças, e apontar algumas ideias interessantes de experimentos que estão tentando avançar nosso conhecimento das forças fundamentais do universo.

Hoje vou falar sobre o que ainda não entendemos do eletromagnetismo

Eletricidade, magnetismo, ótica. Três ciências distintas, com seus fenômenos interessantes e estudados em detalhe ao longo dos séculos. Durante o século 19, o trabalho de vários cientistas demonstrou que essas três ciências são de fato uma só — o eletromagnetismo. Cargas elétricas se movimentando produzem magnetismo, ímãs girando produzem eletricidade, e a luz é uma dança coordenada de eletricidade e magnetismo se propagando pelo espaço.

Mesmo com o advento da física quântica, no século 20, o campo eletromagnético foi o primeiro a ser totalmente entendido e estudado em detalhes, em uma teoria chamada “eletrodinâmica quântica.”

A ideia principal foi em transformar luz e cargas elétricas em partículas elementares, carregando pequenos pacotes de energia. Inclusive, daí a origem do termo “quântico” — em todos os processos físicos, partículas elementares carregam quantidades específicas de energia, carga, momento etc.

As previsões básicas da eletrodinâmica quântica explicam em detalhe quase todos os fenômenos eletromagnéticos que observamos, inclusive em nível atômico, explicando a disposição de elétrons em moléculas, reações químicas etc.

Mais incrível é que com a eletrodinâmica quântica, propriedades extremamente detalhadas de cargas elétricas podem ser calculadas partindo de princípios básicos. O exemplo mais famoso é o cálculo do momento magnético do elétron, que foi em parte o motivo do prêmio Nobel recebido de 1965, dado a Feynman, Tomonaga e Schwinger.

O elétron carrega carga elétrica e também tem um giro intrínseco, que chamamos de “spin.” Mas uma carga elétrica girando gera campo magnético. O elétron acaba funcionando como uma pequena antena, gerando um campo magnético.

A eletrodinâmica quântica produz fórmulas que permitem calcular esse campo magnético intrínseco do elétron. Por outro lado, físicos experimentais conseguem medir essa mesma quantia com extrema precisão.

Eis o resultado. O campo magnético intrínseco é medido em unidades típicas para partículas elementares. Chamo esse número de “g”, sem me preocupar com a unidade:

(g)_{experimental} = 2.00115965218073
(g)_{teorico} = 2.00115965218178

A previsão teórica bate com o valor experimental nos doze primeiros dígitos. O que mais podemos desejar de uma teoria que é tão precisa?

Efeito Schwinger

Em seu famoso artigo que lhe rendeu o prêmio Nobel, Julian Schwinger calculou o momento magnético do elétron até o quinto dígito significativo, dando o primeiro passo para produzir a incrível concordância entre teoria e experimento que ilustrei acima. No mesmo artigo, Schwinger fez uma outra previsão incrível, que ainda não foi verificada em laboratório.

Imagine duas placas eletrizadas, com cargas opostas (esse é um modelo bem simples de uma pilha ou bateria de carro). A medida que você vai aplicando carga nas placas, a energia no espaço entre as placas vai aumentando.

Se você já deu carga em uma bateria com cabos, já percebeu que às vezes o cabo solta faíscas. Essas faíscas surgem porque o ar não sustenta as cargas elétricas ao redor do cabo.

Schwinger demonstrou que esse processo de “descarga elétrica” se dá até no vácuo. Até aí, você não achou nada demais, mas eu quero te demonstrar porque esse efeito é tão estranho.

Quando raios caem do céu, ou o cabo da sua bateria solta uma faísca, o que aconteceu é que uma carga elétrica pulou de um canto para outro, deixando um rastro. No caso idealizado das nossas duas placas, é como se uma carga de uma placa conseguisse saltar para outra.

Mas Schwinger mostrou que mesmo que você mantenha as placas tão distantes quanto queira, ainda assim, elas vão se descarregar. Como? Do vácuo, do espaço vazio, cargas elétricas opostas são geradas, e acabam sendo as responsáveis por neutralizar as placas.

Essa geração espontânea de carga elétrica para neutralizar a distribuição das placas é chamada de efeito Schwinger, e não foi observada em laboratório. O motivo é a enormidade do campo elétrico responsável pela devastação do vácuo. Os experimentos mais potentes ainda estão distantes (por um fator de milhões) do campo crítico.

Como testar o efeito Schwinger então? As propostas mais promissoras envolvem XFEL, na Alemanha.

Na nossa analogia das placas, o experimento proposto irá carregar as placas com eletricidade e, ao mesmo tempo, chacoalhá-las. O chacoalho acaba induzindo a quebra do vácuo com mais facilidade que no caso estático.

Por que o interesse em observar o efeito Schwinger?

Um dos motivos é a analogia do eletromagnetismo com a gravidade. Na vizinhança de um buraco negro, pares de partículas são geradas para neutralizar o forte campo gravitacional do buraco negro. Esse é o chamado “efeito Hawking”, que é talvez o mais importante resultado de Stephen Hawking.

O mesmo efeito de produção de partículas é provavelmente responsável pela formação de estrutura no universo. É impressionante como a natureza utiliza a mesma ideia em contextos tão distintos.

Outro mistério que envolve a força eletromagnética é o da quantização da carga elétrica. Fica para uma outra coluna.

* Guilherme Pimentel é pesquisador no instituto de física da Universidade de Amsterdã na Holanda. Tem graduação em engenharia eletrônica e mestrado em física pelo ITA. Fez doutorado em física na Universidade de Princeton e trabalhou como pesquisador na Universidade de Cambridge. Sua pesquisa é focada em cosmologia e física de partículas; em particular, em propor novas teorias para explicar a expansão acelerada do universo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/para-onde-o-mundo-vai/2021/05/04/misterios-das-forcas-da-natureza----eletromagnetismo.htm