De Bettina a político, técnica de contar história para convencer já cansou

Álvaro Machado Dias

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica “Frontiers in Neuroscience”, membro da Behavioral Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: [email protected]

09/11/2020 04h00

Antigo normal, novo normal, anormal ou paranormal. Qualquer que seja o seu ponto de vista sobre a realidade, sempre haverá alguém pronto a te convencer de uma tese aparentemente autoevidente, que, na realidade, foi criada em função de interesses —e não de qualquer reflexão socrática sobre como o mundo funciona e a nossa existência nele se manifesta.

Durante muito tempo, achou-se que esse tipo de coisa era complexo e multivariado. Alguns milhões de exemplos depois, a gente vê que não é bem assim; que não é preciso ser um ás do marketing para converter um debate aparentemente desinteressado em estratégia para convencer os desavisados a atender a interesses alheios. Eis mais uma coisa boa que as redes sociais nos mostraram, se é que você me entende.

Aqui vai a fórmula para um desses algoritmos (leia-se: lógicas) que você pode rodar num cérebro humano, ou numa máquina, com algumas simplificações.

Pega-se um objetivo, por exemplo, maximizar a quantidade de votos no candidato X que quer ser vereador em São Paulo. Então, define-se um conjunto de prerrogativas correlacionadas. Em seguida, separa-se essas prerrogativas ou “teses” em dois níveis: proximais, isto é, diretamente relacionadas à realidade do candidato, e distais, isto é, relacionadas ao contexto mais amplo.

Avalia-se o poder de conversão das distais. Se esse poder é elevado, pergunta-se: como fazer para que as teses proximais capturem o poder das distais, elevando a sua popularidade? Se o poder é baixo, volta-se ao início.

Por exemplo: uma pesquisa mostrou que os votos no candidato X estão relacionados ao seu papel numa igreja; porém, ele precisa crescer ao menos 15% para ser eleito e não há espaço para tudo isso nos ambientes em que circula.

As prerrogativas proximais mais importantes deste exemplo puramente ficcional são de que ele é um pastor carismático, que está alinhado a um bispo poderoso e é conhecido da comunidade evangélica do Brás.

As distais são que a pauta conservadora de costumes representa uma manifestação dos desígnios de Deus e que a política é um meio legítimo para a expansão da influência evangélica no país (de novo, só um exemplo).

Com essas teses definidas, pergunta-se: como fazer as pessoas acreditarem que o candidato X é o sujeito que vai levar à frente a mensagem de Deus por meio da pauta conservadora de costumes? E como fazer, ainda, as pessoas acreditarem que ele é o cara certo para fortalecer a influência dos evangélicos no país?

Funciona argumentar isso? Não, até porque poucos se dispõem a parar para ouvir. Hoje em dia, a captação de leads (para o que quer que seja) ocorre, sobretudo, através de vídeos amadores ou semiprofissionais, que só são exibidos até o fim se conseguirem manter a audiência engajada.

Funciona mostrar exemplos de situações em que o candidato agiu assim e assado? Isso era o que se acreditava, mas perdeu validade, justamente, porque dá pouco resultado.

A resposta que se universalizou chama-se storytelling, ou técnica forjada para convencer audiências, a partir de uma história supostamente pessoal, que visa amarrar interesses por meio da empatia, para estimular um comportamento ou ponto de vista.

Lembra do tempo em que a gente separava história de estória? Storytelling é estória com jeito de história; é a grande tendência narrativa dos nossos tempos, influenciando o debate público de ponta a ponta, sem muita discussão.

O objetivo do artigo de hoje é começar a cavocar a apatia frente a esse fenômeno que vai muito além do milhão da Bettina ou do pitch do cara de 21 anos que decidiu empreender para mudar o mundo.

Um mundo de palestrantes do TED

Há uns dois anos, recebi um convite interessante: falar na versão local deste evento de palestras chamado TED. Dada a visibilidade do evento, achei importante assistir a um bom número de palestras disponibilizada pelos organizadores, para compreender direito o formato e a relação típica que se estabelece com a audiência. Foi uma experiência no mínimo interessante.

Uma coisa que conecta TED Talks melhores que o melhor dos entretenimentos intelectuais da Ken Robinson) e outras não tão memoráveis é o fato da maioria usar uma estrutura narrativa em três atos.

  • No primeiro, uma pequena e comovente estória/história pessoal é apresentada como se desprovida de qualquer instrumentalidade.
  • No segundo, o pivô da narrativa torna-se responsável por abrir os olhos do palestrante para algo de interesse.
  • No terceiro, é apresentada a tese de que esse algo também é relevante para quem se identificou com a narrativa.

A fórmula é boa e fez do TED um dos fenômenos culturais mais interessantes dos nossos tempos.

Seu canal no YouTube permite que qualquer um assista, de graça, palestras sobre os mais variados assuntos, pouco depois de sua apresentação ao vivo, essa sim paga.

TED certamente está naquele 1% do material de melhor qualidade do YouTube e é um alento ver que a sua popularidade só cresce. Por outro lado, não deixa de ser verdade que o procedimento narrativo adotado, muitas vezes, beira o ridículo.

Parece um paradoxo? Não quando considerada a qualidade dos outros 99% —e o fato de que essa tal estória nem sempre impede a gente de ver o quanto a coisa em si é legal.

Fulano é de Princeton e publicou na Nature. Bom pra burro. Estuda como fenômenos quânticos ditam o funcionamento das bússolas internas de pássaros migratórios do oeste dos Estados Unidos.

Entra no palco como quem ascende ao confessionário e conta uma história sobre como a sua vida mudou quando um professor de ioga lhe ensinou que estamos todos unidos por forças que não respeitam a lógica naturalista do espaço e do tempo. “Estamos entrelaçados”, diz com voz de sessão de terapia.

Conta também que resolveu fazer as pazes com a mãe, com quem não falava há 15 anos, e que passou a aplicar o princípio em todas as escalas de sua vida. Assim é que chegou às bússolas retinares destes pássaros migratórios, os quais —nos lembra— fazem a ponte entre a microbiologia, assunto do seu dia a dia, e mecânica quântica, área de origem dessa força cósmica pan-trans-para-aglutinadora, que é o entrelaçamento.

Aqui do meu lado, penso: estranho. Nunca tinha visto alguém começar uma carreira de sucesso em retina de pássaro ou mecânica quântica por causa da mãe ou do professor de ioga.

Brincadeira, é claro. Sei que a estória é para resolver um problema: por mais que o trabalho seja fascinante para quem consegue entender a sua lógica, ele tem baixa porosidade para todo mundo. É aí que entra o storytelling. Ele serve para dar um sentido mais amplo e palatável para o que interessa ao narrador, reduzindo a resistência natural da audiência.

Enquanto a tese proximal, que motiva o narrador a dormir tarde e acordar cedo, é que o entrelaçamento de elétrons na retina de um pássaro migratório permite avançar no entendimento da navegação ambiental, por meio de modelos matemáticos emprestados da mecânica quântica, a tese distal é que o entrelaçamento, sendo uma propriedade fundamental da matéria e mesmo da vida, une a todos. Ela está lá porque, supostamente, interessa à audiência.

Deitadas as bases da tese distal, eis que surge a tarefa mais difícil do storytelling: conectar essa ampla e vasta narrativa, que eventualmente tangencia a vida da audiência, com o objeto de interesse do narrador. É juntar a tese de que a pauta de costumes representa um desígnio de Deus com a de que o candidato é conhecido da comunidade evangélica do Brás.

Isso não é nada fácil e é justamente por isso que o negócio do storytelling funciona mais para vender cursos e formações, do que para efetivamente sensibilizar as pessoas sobre suas vidas e seu futuro: é preciso algo além de técnica e esperteza para realizar o passe de mágica presumido.

No meu entendimento, há três estratégias básicas para se tentar chegar lá.

A primeira é a dos silogismos. Funciona assim: nós somos todos conectados por uma força desconhecida. Ao perceber isso, apliquei ao meu trabalho e descobri tal propriedade na retina de pássaros. E você, onde a encontrará? Ou então: Deus precisa de gente que defenda seus interesses. Eu descobri isso aqui no templo X do Brás. E você, onde encontrará? A ideia é que as respostas sejam, respectivamente, na admiração pelo seu trabalho e votando em você. Eu acho essa estratégia meio chumbrega. Ela me soa esquemática, artificial. Imagino que a sensação seja geral, não sei.

A segunda estratégia é a da lição de vida. Funciona mais ou menos assim: nós somos todos conectados por uma força desconhecida, como os iogues indianos do século 20 antes de Cristo já sabiam. Ao finalmente perceber isso, tive uma lição de vida, que catapultou a minha existência, chegando até o meu trabalho, onde abracei o entrelaçamento quântico. Isso me fez uma pessoa melhor (mais feliz, mais sábia – como funcionar melhor).

Ou então: Deus precisa de gente que defenda seus interesses. Essa foi a lição deixada por seus apóstolos. Quando finalmente percebi isso, numa tarde chuvosa em que passei perto do suicídio, decidi me dedicar à sua palavra e seus valores. Isso me tornou uma pessoa melhor (mais feliz, mais sábia —como funcionar melhor).

Essa daí funciona bem mais do que a anterior porque não representa uma venda direta; ela usa e abusa da identificação projetiva, para que uma parte do raciocínio possa se desenvolver na mente da audiência, que assim se sente mais próximo do narrador e de seu contexto proximal, por mais lábeis que sejam as conexões reais sugeridas.

Porém, sua maior vantagem é também uma limitação: para conectar os pontos, a audiência precisa investir algum tempo e energia —coisa que muitas vezes não rola, especialmente considerando o papel determinante das mídias digitais para a propagação do storytelling.

Do mais, ela exige que o contador de estórias conviva com a ideia de não carregar a audiência pela mão até onde deseja que ela estacione, o que é um verdadeiro suplício para quem é inseguro, controlador ou ambos ao mesmo tempo (o que tende a ser o caso, dada a raiz psíquica comum).

Já a terceira estratégia? Bom, a terceira nem é de fato uma estratégia. Ela é a descrição sempre renovada do processo de descoberta de relações reais entre as teses que habitam o microcosmo individual e algo mais amplo e significativo para o mundo. Ela é como “Dois Papas“, de Fernando Meirelles, transcendendo diferenças ideológicas e religiões, em seu afã de não manipular.

No mundo do storytelling, é a que mais funciona, disparadamente. Seu único problema é não dar as caras quando o sujeito passa o dia pensando em angariar votos. Ou em vender palestra.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/alvaro-machado-dias/2020/11/09/a-pandemia-do-storytelling.htm