Obrigado, Dener

Juca Kfouri

04/04/2021 14h05

POR BERNARDO PASQUALETTE E SINVAL FERREIRA*

Sexta-feira santa, 02.04.2021. Santa, sexta-feira. Quis o destino que esse dia tão simbólico para os católicos marcasse os 50 anos do nascimento de Dener, uma das maiores promessas que o futebol brasileiro já viu surgir. De santo o craque pouco tinha, mas, a sua genialidade, essa sim, era divina. Sorte dos privilegiados que o viram jogar.

Alçado aos profissionais por Antônio Lopes na precocidade de seus 18 anos, em verdade, desde que Dener pisara pela primeira vez no gramado do Canindé, todos por aquelas bandas perceberam que estavam diante de um jogador diferenciado. Nunca o velho e simpático estádio da Lusa vira tanto poder de improvisação em um só atleta. 

Nem voltaria a ver.

A sua trajetória antes do futebol foi típica dos jovens de origem humilde. Teve pouco contato com o pai biológico e suas duas grandes referências foram a mãe, dona Vera Lúcia, e o avô, seu José Lourenço, que o criaram com muito sacrifício na periferia de São Paulo. O nome era uma homenagem ao costureiro Dener, famoso nas décadas de 1950-60 por vestir as primeiras-damas do Brasil, em especial, a elegantíssima Maria Thereza Goulart.

Nos juniores da Portuguesa de Desportos, Dener marcaria época no futebol de São Paulo. Foram dois títulos de expressão – campeão paulista de 1990 e campeão da Copa São Paulo, a “Copinha”, de 1991. Pode parecer pouco, dado ao brilhantismo de Dener. Mas, definitivamente, não é. Foram apenas duas conquistas de relevo, mas não faltaram lances de rara beleza plástica que encantaram a todos que assistiram àquela jovem geração surgir.

Orientados pelo experiente treinador Écio Pasca, a garotada da Lusa já iniciava a sua jornada no futebol com conceitos um tanto quanto revolucionários, sobretudo se levarmos em consideração o modorrento ambiente do futebol brasileiro da época.

Écio, adepto de um futebol de muita mobilidade, exigia que os seus jogadores, principalmente a sua linha de frente, trocassem constantemente de posições. Nas trocas de passes e triangulações para envolver as defesas adversárias, os seus dianteiros tinham que “flutuar” o tempo inteiro a fim de confundir a marcação adversária. 

Inovador em seus termos, os ousados conceitos fizeram surgir o maior quartetode ataque já visto na Copa São Paulo: Tico, Pereira, Dener e Sinval. Baseado em um nome pomposo, “losangos flutuantes”, o treinador conseguiu aliar a extrema habilidade de seus jovens atacantes à uma orientação tática revolucionária para a época. Mais do que isso: fez com que florescesse toda a genialidade do mais franzino entre os dianteiros que formavam aquele inesquecível comando de ataque, propiciando que Dener atingisse o máximo de suas potencialidades ainda muito jovem.

Os números falam por si: foram 9 vitórias em 9 jogos e nada menos que 34 gols marcados, com a impressionante média de 3,8 gols por jogo. Para coroar aquela campanha, na grande final a Lusa atropelou o Grêmio: 4×0. Dener foi eleito o melhor jogador da competição e Sinval o artilheiro, com 12 gols.

Marcado por atuações absolutamente exuberantes, Dener seriam lembrado pelo treinador Paulo Roberto Falcão, em processo de renovação da seleção brasileira após o fiasco no Mundial da Itália, em 1990. Seria a sua única convocação para a seleção brasileira principal.

Pelos profissionais da Portuguesa, nenhum título de expressão. Por outro lado, gols e jogadas geniais – ambos marcados pela mais pura plasticidade – não faltaram. Em verdade, Dener imprimiu uma beleza estética ao jogo poucas vezes vista. Suas mudanças bruscas de direção com a bola colada aos pés, sua leveza e agilidade, e, principalmente, a sua capacidade de improvisação com as duas pernas atormentavam as zagas adversárias e levavam ao delírio às arquibancadas.

No gramado do Canindé Dener marcou certamente o gol mais bonito de toda sua carreira, quando em uma arrancada deslumbrante da intermediária, diante dos indefesos defensores da Inter de Limeira, o jogador aliou velocidade e habilidade extremas para superar os adversários e balançar as redes com enorme categoria. 

A data exata: 14.11.1991. O estádio do Canindé nunca mais voltaria a ser o mesmo após esse lance. Nem o nosso futebol.

Dener ainda teve passagens por Grêmio e Vasco da Gama, onde teve alguns lampejos do genial jogador que foi na Portuguesa. Seu último título foi a Taça Guanabara de 1994, conquistada pela equipe cruz-maltina em março daquele ano, cerca de um mês antes do jogador falecer precocemente em um acidente de carro na Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul carioca.

Se a voz do povo é a voz de Deus, em 1994 talvez tenha recebido o maior reconhecimento de toda sua carreira. Pelo menos em vida. A revista Placar, em pesquisa realizada pelo Instituto Ibope, ouviu brasileiros de todas as regiões do país para saber quem o povo queria que vestisse a amarelinha na Copa do Mundo de 1994. Não deu outra. Dener estava entre os 22 jogadores que, se dependesse da torcida, representariam o Brasil nos Estados Unidos.

No entanto, não deu tempo. Em junho de 1994, Dener não estaria mais entre nós. Como teria sido bom vê-lo destilar o verdadeiro espírito do futebol brasileiro nas terras do Tio Sam. Se nos serve de algum consolo, não existe partida definitiva para aqueles que ficam no coração.

Obrigado, Dener. 

P.S.: Esse texto também é dedicado a Écio Pasca, treinador que ajudou a revelar a geração mais talentosa da Portuguesa de Desportos.

*Bernardo Pasqualette é advogado e Sinval Ferreira jogou com Dener.

Fonte: https://blogdojuca.uol.com.br/2021/04/obrigado-dener/