Nossa relação de negação com a Cracolândia aparece até no Google Maps

Christian Dunker

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)… além de youtuber.

20/11/2020 04h00

Descendo na estação Luz do metrô, atravesse a ponte rumo à estação Júlio Prestes e a proximidade da rua Helvétia. Pise com cuidado porque você está atravessando parte dos sonhos paulistanos mais longínquos.

Poucos lembrarão que desde os anos 1920 a região concentrava a Metro. Esse foi o embrião do Cinema Marginal brasileiro, onde se formaram Zé do Caixão e Carlos Reichenbach.

Já nos anos 1960 o cinema da Boca do Lixo, com suas invenções e imitações criativas, foi sendo recusado pela população, o que acabou transformando os antigos cinemas em casas de encontro e pornografia. Quase ninguém terá em mente que nos anos 1950 um “acordo de cavalheiros” decidiu concentrar ali a região do meretrício, estabilizando assim o conflito entre o abolicionismo inglês e o regulamentarismo de linhagem francesa. Na expressão da historiadora Margareth Rago:

“São duas políticas muito contraditórias, porque o regulamentarismo supunha que o Estado deveria interferir, definindo locais específicos, horário de funcionamento das casas, circulação das mulheres. Enquanto o abolicionismo pautava-se na ideia de que o Estado não podia interferir, porque estaria agindo como cafetão”.

Ou seja, ande com cuidado porque você está pisando no imaginário histórico e no ponto de convergência de contradições que nos formaram.

Em síntese: em torno de museus como Sala São Paulo (Osesp), encontra-se aquilo que a nossa cultura repudia, execra e quer eliminar.

Muito deste processo pode evocar a conhecida hipótese psicanalítica que as raízes da história que nos formou frequentemente precisam ser negadas, para que não nos lembremos das contradições das quais somos feitos. Isso ajuda a entender porque a mais alta cultura convive como a imagem do “pior” que nossa civilização foi capaz de produzir. Isso ajuda a entender também porque uma coisa não se comunica com a outra e porque ambas não se reconhecem como partícipes do mesmo processo mesmo habitando espaços tão próximos.

Um exemplo de como negação e dualismo encontram-se atuantes em versão digital pode ser experimentado pelo leitor.

Digite: “como chegar à cracolândia?” no Google. Agora clique em “maps” e você será levado automaticamente para “Cristolândia”.

Como se o algoritmo interpretasse que quem faz uma pergunta tão suspeita como esta deve ser enviado para Jesus. Boas intenções à parte, não é negando a existência de um território que ele será revitalizado.

A Cracolândia é uma espécie de síntese e condensado dos conflitos históricos que atravessam a cidade. Ela está lá a nos lembrar da circulação de pessoas, neste monumento ferroviário silencioso que é a estação Júlio Prestes. Ela nos lembra da migração mal acolhida, da pobreza invisível, dos ex-presidiários que sujeito a multas absurdas quando saem da cadeia não têm onde se empregar, nem como ser recebidos por suas famílias.

Ela nos lembra de como tratamos a população transexual, que privada de emprego e condições de reconhecimento social recorre a este espaço de “no man’s land”.

Se você nunca foi à Cracolândia, faça uma visita guiada. Isso pode reduzir muito dos preconceitos e projeções sobre o que existe atrás dos muros, inclusive muros culturais que construímos para nos proteger.

Foi isso que fiz com meus alunos no contexto do convênio que assinamos com a Defensoria Pública para escutar o sofrimento dos policiais da Guarda Civil Municipal. Isso mesmo. Se queremos reduzir a violência é preciso cuidar de nossa polícia. Modificar a maneira como são formados nas academias, participá-los e incluí-los nas transformações como atores da cidade que queremos.

Uma das versões narrativas mais hostis e equivocadas desta contradição entre o alto e o baixo na Cracolândia é aquela que se recusa a ver que o sofrimento alinha todos que dele se aproximam: médicos, policiais, usuários, traficantes, famílias, religiosos e comerciantes. Faz parte desta impotência estrutural para “resolver o problema” as reações de violência, moralização e invisibilidade.

Em nossa expedição pudemos ver que a Cracolândia é muito mais e muito menos do que o mito político formado em torno dela.

Logo na entrada vemos as barracas que vendem crack, e que são pacientemente desmontadas e remontadas a cada verificação de limpeza. Se viramos à direita encontramos os sobreviventes do antigo projeto “Braços Abertos”, inspirado no programa clínico de redução de danos, que reconhece, acolhe e acompanha o processo da dependência cruzando-o com as outras determinantes da cracolândia: pobreza, desterritorialização, desemprego e transtornos mentais. Apresentei os princípios científicos nos quais se baseia a redução de danos em coluna anterior, ressaltando como as condições de recuperação e proteção são mais favoráveis quando o ambiente é interessante e vinculativo.

A carência de recursos humanos e materiais é óbvia. São voluntários dedicados, em convivência diária e noturna com usuários. Os portões estão abertos, as pessoas entram e saem, recebem alimentação. Os laços de cuidado e atenção se mantêm, apesar das centenas de pessoas deitadas em torno de uma única televisão. A disputa por um lugar para dormir gera tensão, mas não deixa de ser o último refúgio para quem perdeu tudo.

O contraste é brutal com o edifício que fica em frente, onde funciona a operação “Redenção”. Tudo limpo, branco e asséptico. Ali você entra desde que declare o desejo de interromper o consumo de drogas. Tentamos falar com os responsáveis clínicos, o que só é possível mediante contato e agendamento prévio. Mas é possível ver que os pacientes são bem tratados, ainda que enviados para abrigos depois do período inicial de luta contra os efeitos da abstinência.

A inadmissível descontinuidade entre osBraços Abertos”, de Fernando Haddad (prefeito de SP de 2013 a 2016), e o “Redenção”, de João Doria (prefeito de SP de 2017 a 2018), um de cada lado da rua, com a miséria no meio, é a metáfora persistente de como é possível usar as melhores tecnologias disponíveis para o prejuízo de todos.

Recusar-se a reconhecer a realidade mais extensa do consumo de drogas repete os abolicionistas ingleses, que se negavam a admitir o reconhecimento, pelo Estado, dos trabalhadores sexuais. Lembremos que os mesmos ingleses defendiam nominalmente a abolição da escravidão ao mesmo tempo que se beneficiavam, com o comércio cruzado que ela requeria.

Hoje o fracasso mundial da guerra às drogas alimenta a indústria militar da coerção e o novo negócio religioso das reabilitações morais. Contra eles os regulamentaristas franceses pretendiam reconhecer o lado obscuro da civilização, eventualmente para administrá-lo, talvez em benefícios de todos.

No fundo, a política que temos com relação ao que excluímos, seja historicamente seja individualmente, reflete a maneira como entendemos a sociedade: como um conjunto de monumentos e realizações luminosas, ou como uma mistura de altos e baixos. O mais elevado patrimônio cultural ao lado do mais relegado elemento humano. Uns querem polir e limpar, outros querem organizar e civilizar.

A Cracolândia não é só um assunto de saúde pública. Ela representa a encruzilhada de problemas e de diálogos que o Brasil precisa enfrentar para sair da monomania na qual se colocou.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2020/11/20/voce-ja-foi-a-cracolandia.htm