“Quarenta minutos antes do nada”


OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly Lacombe

Milly Lacombe, 53, é jornalista, roteirista e escritora. Cronista com coluna nas revistas Trip e Tpm, é autora de cinco livros, entre eles o romance O Ano em Que Morri em Nova York. Acredita em Proust, Machado, Eça, Clarice, Baldwin, Lorde e em longos cafés-da-manhã. Como Nelson Rodrigues acha que o sábado é uma ilusão e, como Camus, que o futebol ensina quase tudo sobre a vida.

Colunista do UOL

13/03/2021 18h34

Minha primeira memória futebolística envolve meu pai e a mão direita dele segurando minha mão esquerda na subida da rampa que dava acesso à arquibancada do Maracanã.

Estamos em 1972 e eu tinha quatro anos.

Minha mão direita segurava uma almofada quadrada que minha mãe tinha feito para mim com as cores do Fluminense. Duas coisas ainda posso sentir com perfeição: a sensação da mão de meu pai fechada na minha e a textura da almofadinha, peça que eu usaria durante anos no Maracanã para diminuir a sensação de sentar no concreto da arquibancada por 90 minutos.

Naquela tarde, meus pequenos passos obrigavam meu pai a andar devagar, e eu lembro de sentir que, a cada passo, o barulho que eu estava escutando e que vinha daquele clarão lá no final da rampa- totalmente inédito para meus ouvidos -, aumentava.

Eu olhei para cima e vi meu pai olha para baixo e sorrir. Ele deve ter sonhado com aquele dia muitas vezes na vida: o momento em que apresentaria à primogênita o lugar que ele mais gostava na cidade, e o time que mais amava na vida.

Por nós dois passavam muitas pessoas: gente com a camisa do adversário, gente com a mesma camisa que eu estava usando. Tudo misturado.

Flamenguistas passavam a mão em meus cabelos pretos enquanto subiam, saudando o que, devia estar claro, era a inauguração de uma paixão. E todos faziam isso a despeito de eu estar vestida em um uniforme que não tinha a cor do deles.

Finalmente estávamos quase chegando ao clarão do fim da rampa. O barulho agora era colossal e ao final da rampa se deu a apoteose: as cores, o cheiro, os ventos que existem apenas em um estádio de futebol se apresentaram para mim. Que grandiosidade diante dos meus olhos.

Olhei para os lados: do lado direito, a torcida rival. Do lado esquerdo, a nossa. O torcedor chegava ao final da rampa e ia tomando seu lugar naquele universo de concreto. Não lembro de haver alguém orientando para onde deveríamos ir: cada um sabia da paixão que o movia.

No topo da rampa e meu pai parou como quem sabe que aquele momento precisaria ser eternizado. Olhei o campo à frente. Enorme. Potente. Vivo. Os times ainda não tinham entrado e ficamos ali, meu pai e eu, sem dizer nada. Depois de um tempo ele me pegou no colo e subimos os degraus, indo nos misturar aos tricolores.

E eu, acostumada a ver meu pai sempre metido num terno e enforcado por uma gravata, agora via ele inteiro coberto em pó de arroz. Que imagem deliciosa. Ele ria, eu ria.

Os times entraram e as torcidas se agigantaram. Uma Guerra de gritos, de músicas, de hinos.

Não me lembro do resultado daquele jogo, mas isso é o que menos importa. Tudo mais está na minha cabeça registrado, no meu corpo internalizado, na minha alma tatuado. Talvez naquele instante em que paramos ao final da rampa tudo o que eu precisasse saber sobre esse jogo tenha sido absorvido.

Nesse domingo, dia 14 de março de 2021, Flamengo e Fluminense se encontram pela 413º vez.

Quem estará no estádio? Nenhum torcedor entre os vivos, certamente. Mas talvez muitos dos que já foram.

Nelson Rodrigues, sem dúvida, vai passar por lá. Indignado com a ausência de torcida, mas ainda mais indignado com um governo que entrega sua população ao sufocamento.

Nelson não deve estar feliz há tempos. Onde já se viu jogo de torcida única, como fazíamos antes da pandemia? Que história é essa de não nos suportarmos mais a ponto de nem podermos rivalizar dentro de um estádio de forma saudável?

Nelson, o cara que achava que deveria haver no futebol o comentarista de torcidas, assim como existe o comentarista do jogo. Ele certamente estaria agora esbravejando contra o que estamos fazendo com o futebol e com o que fizemos com o estádio cujo nome é uma homenagem a seu irmão: Mario Filho.

Por que querem mudar o nome de um gigante? Para onde foi a geral? Que gurmetização é essa que fizeram com o maior do mundo? Que jogo é esse que estamos vendo em campo? Camisas nas quais mal podemos ver as cores de tanto nome de patrocinador. Algumas coisas muito erradas não devem estar certas.

“Um time pode jogar descalço, jogar de pé no chão”, o cronista escreveu. “Só não pode jogar sem alma. A simples execução de um plano tático exige um máximo de paixão”. Para Nelson, o parentesco que existe entre Flamengo e Fluminense, um parentesco Gerado no ressentimento, fazia deles os irmão Karamazov do futebol Brasileiro.

Mas o futebol insiste. O espetáculo resiste. O jogo persiste.

“Futebol no Brasil é cultura”, escrevem os professores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. “Consolidou-se como um campo de elaboração de símbolos, projeções de vida, construção de laços de coesão social, reivindicação identitária e tensão criadora, com todos os aspectos positivos e negativos implicados nesse processo”.

É uma pena que tenhamos que deixar de frequentar os estádios – agora chamados de arenas multi-uso -, uma pena que estejamos assistindo a um genocídio no Brasil, seja causado pelas ações negacionistas de uma administração psicopata, seja causado pelas ações negacionistas de governadores que se recusam a fornecer auxílio emergencial decente a seus habitantes.

É uma pena que, mesmo quando formos autorizados a voltar a frequentar estádios (vai demorar), não possamos mais ver as torcidas misturadas, a guerra de vozes, o duelo de cores e de hinos.

Um estádio habitado pelo torcedor em transe é, como ensina Simas, um estádio terreirizado.

É onde a gente entendem que é, ao que pertence, do que somos feitos. É habitar as fretas, é mandar às favas o Brasil institucional, resultado de uma colonização violenta, de um projeto de ódio que ainda dizima nossos irmãos e irmãs, um projeto de ódio que não para de se renovar.

Que o Fla-Flu, o jogo que nasceu quarenta minutos antes do nada como ensinou Nelson Rodrigues, persista. Que possamos sair dessa circunstância política trágica e voltar a respirar juntos e juntas.

Que possamos, num domingo qualquer nas arquibancadas da vida, voltar a abraçar o estranho depois do gol improvável do nosso time.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2021/03/13/quarenta-minutos-antes-do-nada.htm