Como Volkswagen produziu Fusca ‘secreto’ que chega hoje a R$ 150 mil

Rodrigo Mora

O blog Mora nos Clássicos contará as grandes histórias sobre as pessoas e os carros do universo antigomobilista. Nesse percurso, visitará museus, eventos e encontros de automóveis antigos – com um pouco de sorte, dirigirá alguns deles também.

Colunista do UOL

31/01/2021 04h00

(SÃO PAULO)A Volkswagen decidiu encerrar a produção do Fusca no Brasil em 1986. Importado oficialmente desde 1950, produzido na fábrica da Anchieta a partir de 1959 e por 24 anos líder de vendas, o carro mais democrático e onipresente do país merecia descanso. No mais, seu sucessor Gol já era o protagonista na empresa e, prestes a assumir a dianteira do mercado, demandaria mais atenção.

Daí a marca fez o que se deve fazer quando um ícone se despede, que é criar uma versão especial limitada e numerada para celebrar a despedida. No caso do Fusca foram 850 exemplares baseados na configuração mais luxuosa e sem adição de equipamentos ou incrementos decorativos. Traziam apenas uma gravação nos vidros com o número de série e o total de exemplares daquela safra especial: 001/850, 002/850, 003/850, 004/850…

Outros quitutes de coleção eram um chaveiro, chave reserva dourada, certificado, fita VHS, manual e par de placas com o número de série.

Assim nasceu o Fusca Última Série, sempre pintado nas cores metálicas bege Polar, cinza Plus ou azul Stratos. “Às vezes o avanço tecnológico de uma empresa não está no que ela faz. Mas no que deixa de fazer”, dizia a VW no anúncio daquela que seria a primeira despedida do Fusca; a segunda, em 1996 após o retorno em 1993, seria com a Série Ouro.

Última Série branco?

Fã do Fusca, o colecionador e pesquisador André Chun mergulhou na história do Última Série em 2015 e hoje tem catalogados 620 dos 850. Durante a jornada, foi escarafunchando detalhes da produção e descobriu um intervalo de 2200 chassis (GP045750 até o GP047950) entre o primeiro e o derradeiro Última Série, o que deixa claro que a Volkswagen intercalou os numerados com Fuscas “convencionais” na linha de produção.

Mera curiosidade diante do que desvendaria adiante.

“Durante uma troca de e-mails com Andreas Wolfsohn, engenheiro da VW entre 1970 e 2003, ele me contou que teve um Última Série branco”, relembra Chun, que ainda recebeu uma foto registrando um Fusca daquela cor na linha de montagem. O que seria costumeiro, exceto por um detalhe: aquele era o último dia da produção do modelo, 31 de outubro de 1986 – na teoria, só deveria haver Fuscas das cores da versão especial.

“E quando perguntei qual era o número de série do seu carro, o Andreas me surpreendeu: ‘Última Série 31/10/1986′”, acrescenta. Tal como os Última Série numerados, estes também exibiam uma gravação nos vidros, só que com a data da manufatura final.

Era uma notícia que contrariava tanto as informações oficiais quanto sua pesquisa. Uma pista do que poderia ser aquele Fusca anônimo e incógnito surgiu quando o historiador recebeu, no grupo de Watsapp de colecionadores de Última Série, uma lista com os 100 funcionários mais antigos da VW agraciados com o direito à compra do modelo especial direto da fábrica. Logo, desconfiou: “então os funcionários receberam um Última Série diferente?”.

Com a tal lista em mãos, Chun buscou pelos colaboradores – todos já aposentados e fora da companhia – e depois de conversar com alguns constatou que não, a eles não estava reservado um Última Série diferente daquele que foi para o mercado. Mas à cúpula da montadora, sim – daí o apelido Última Série “de Diretoria”.

Eram inicialmente 24, montados com elementos ausentes no Última Série padrão, como proteção de borracha nos para-choques e forro antirruído no cofre do motor. No interior, havia certo requinte com revestimento e volante do Fox (o Voyage para exportação), relógio analógico, porta-objetos nas portas, carpetes cinzas, quebra-sol com espelho e porta-documentos, manivelas de abertura dos vidros emprestadas do Santana e buzina dupla.

Alguns ainda traziam como opcionais toca-fitas Rio de Janeiro, quatro alto-falantes, forro nas portas e faróis de longo alcance.

Seus destinos eram diretores, vice-presidentes e também o presidente à época, Wolfgang Sauer, que – segundo a pesquisa de Chun – ficou com dois, um “de Diretoria” e um numerado.

Uma segunda fornada dos Última Série “de Diretoria” foi produzida para atender funcionários daquela lista dos colaboradores mais longevos, que por algum motivo desconhecido ficaram sem seus Fuscas Última Série numerados. Então entraram na linha no último dia de produção mais 26, totalizando 50 exemplares brancos.

“A maioria ficou descontente porque era o azul que deveriam receber, que de fato era mais bonito. Só se empolgaram com o carro depois, quando descobriram que aqueles eram mais refinados”, conta Chun.

E para que também tivessem algo colecionável, os funcionários que receberam o Fusca branco ganharam souvenirs alinhados com seus carros. Neles, a placa, o chaveiro e o manual não continham o número de série, mas sim os dizeres “Última Série 31/10/1986”, replicados também nos vidros dianteiros – o que os exemplares inicialmente reservados à diretoria não tinham. Manual do proprietário e certificado também não eram numerados.

“A Volkswagen não podia simplesmente numerá-los, pois corromperia a ideia de versão especial limitada a 850 carros”, conclui o pesquisador.

Não está à venda

Dos 50, apenas 22 circulam hoje – os demais foram roubados ou descaracterizados.

E podem tirar o cavalinho da chuva aqueles que pretendem ter um. “O meu já tem comprador, mas ele reclama que eu não vendo nunca”, brinca Chun, proprietário de um exemplar outrora destinado à diretoria.

O mais cobiçado rodou apenas 130 quilômetros e foi adquirido em 2018 – em rara troca de mãos – pelo colecionador André Cerrão, que afirma ter pago R$ 100 mil pelo modelo. “Hoje calculo que valha entre R$ 150 mil a R$ 200 mil. Mas não vendo por nenhum desses valores”, avisa. Cobiçado e inalcançável.

Chun concorda quanto aos valores: “a R$ 150 mil ele chega fácil”.

Lembram do Andreas Wolfsohn, o primeiro a revelar a existência de um Última Série branco? Seu carro hoje está com o colecionador José Geraldo Morais, que avalia não haver mercado para esse tipo de carro. “É um nicho muito específico, porque ele ‘não existe’. Em estado de conservação original e pouco rodado há 15, no máximo. E quem tem, não vende”, explica.

Resta se contentar com um Última Série numerado, cujos preços podem variar de R$ 10 mil a R$ 100 mil, conforme o estado do veículo. Exceção feita ao 850, também de Morais, que jura jamais vender sua relíquia. Aparece, vez ou outra, na concessionária Tatita, de Cambuí (MG), só para atrair curiosos – e clientes de modelos novos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/carros/colunas/mora-nos-classicos/2021/01/31/ultima-serie-de-diretoria-como-fusca-anonimo-chega-hoje-a-r-150-mil.htm