Como a tecnologia é usada em empresas que nasceram para ajudar a democracia

Letícia Piccolotto

Letícia Piccolotto especialista em gestão pública pela Harvard Kennedy School, presidente da Fundação Brava e fundadora do BrazilLAB, primeiro hub de inovação que conecta startups com o poder público. Em 2020, foi a única brasileira na lista das 20 principais lideranças mundiais em GovTech da Creators, laboratório de inovação sediado em Tel Aviv (Israel).

20/02/2021 04h00

O mundo digital tem sido uma arena estratégica da política nos últimos anos. Isso é especialmente verdade quando consideramos o contexto brasileiro e entendemos a fundo o impacto que as tecnologias e, especialmente, as redes sociais podem ter nas eleições, na avaliação de governos, na vocalização de pautas políticas e também na formação de cidadãos.

Os exemplos mais recentes e concretos dessa intersecção entre tecnologia, democracia e política, no entanto, não são positivos. Vimos grupos organizados atuando de maneira coordenada para a disseminação de fake news, convocando para eventos públicos nos quais a defesa da antidemocracia é feita abertamente e também questionando a existência de instituições que são o pilar de nossa democracia.

Os tempos são difíceis e esperamos que todos esses eventos, por mais localizados que sejam, possam ser investigados e tenham uma resposta à altura.

Mas, como já discuti aqui, não podemos culpar a tecnologia pelos desvios que são feitos a partir de suas soluções. As soluções digitais são um instrumento e, quando aplicadas para garantir o bem comum, elas transformam positivamente a sociedade. E é nesse potencial que quero me atentar hoje.

Se as tecnologias têm sido utilizadas para ameaçar a democracia, há também muitos exemplos de como elas podem fortalecê-la. E eles se multiplicam cada vez mais a partir do trabalho das civictechs.

Civictechs e a construção da democracia

As civictechs são startups que nasceram com objetivos muito similares aos de uma govtech: visam enfrentar problemas públicos.

Embora a rigidez dos conceitos seja menos importante, um elemento diferencia esses dois grupos: as civictechs têm como “cliente” principal o cidadão e buscam oferecer soluções que ampliem elementos fundamentais ao exercício da democracia: o engajamento, a transparência, a escuta de demandas e a possibilidade de participação.

Há diferentes tipos de tecnologias que podem ser enquadradas no grupo de civictechs.

É o caso da GetCalFresh, permite a participação de cidadãos em programas de nutrição e alimentação. Ela já está sendo utilizado por 58 países e conta com mais de um milhão de beneficiários inscritos.

Há também a orçamento participativo de Porto Alegre (RS).

Ainda em matéria de participação popular e engajamento cívico destacam-se a Irys, nos Estados Unidos, assim como a Citizen Lab, que conta com mais de 240 municípios ou governos locais pelo mundo usando sua plataforma, desde Vancouver e Seattle até Leuven e Utrecht.

Ou a árvores centenárias sejam preservadas.

No Brasil também há diversas civictechs, como discuti diversas vezes aqui na coluna.

Há algumas que trabalham com o crowdlaw, quando a tecnologia é utilizada para permitir que os cidadãos possam opinar sobre a elaboração de uma determinada lei. O exemplo mais marcante desse tipo de tecnologia foi o portal online Wikilegis, criado pelo inovação da Câmara dos Deputados. Com ele, cidadãos de todo o país puderam apresentar sugestões de texto, propor temas e acompanhar a tramitação de uma legislação fundamental, o Marco Civil da Internet.

Outros exemplos de civictechs se preocupam em possibilitar consultas públicas sobre ações dos governos, como o e-Cidadania, criado em 2012 pelo Senado Federal.

As formas de participação pelo portal são diversas: é possível apresentar uma ideia legislativa, participar de audiências públicas e também opinar sobre projetos de lei em tramitação. Desde sua criação já foram apresentadas 86.759 ideias legislativas, muitas delas transformadas em projetos de lei.

Outras civictechs buscam valorizar a inteligência coletiva, promovendo a coleta de informações de forma colaborativa. É o caso do Colab, startup que apostou no desenvolvimento de um canal de comunicação e relacionamento direto entre governo e cidadão.

O aplicativo permite que cada cidadão possa registrar problemas da cidade —como uma lixeira quebrada, buraco na via, árvore que precisa de poda— compartilhando o problema para que a prefeitura encontre uma solução.

E um último tipo de civictech é a que trabalha com gamificação e jogos que permitem a formação para a cidadania e o desenvolvimento de uma cultura democrática, como o Cidade em Jogo, uma iniciativa desenvolvida pela Fundação Brava e pelo Woodrow Wilson Center (Brazil Institute) e que trabalha com a lógica de role-playing (RPG): o jogador assume o cargo de prefeito para decidir quais são as melhores soluções para enfrentar os maiores problemas de sua cidade.

Espera-se que, ao ser responsável por definir as prioridades do governo, fazer a gestão dos recursos públicos e atender às expectativas de seus cidadãos, o jogador-prefeito possa se engajar nas questões relacionadas à vida pública e tornar-se mais politicamente consciente, ampliando sua participação social e política.

A excelente notícia é que as possibilidades de desenvolvimento de CivicTechs vão se ampliando a cada dia, porque os desafios são muitos e diversos. E, recentemente, o BrazilLAB, hub govtech que fundei há quase cinco anos, também se engajou na coordenação internacional de esforços sobre o tema.

Dentro do Brasil, apoiando o desenvolvimento de tecnologias que ampliem a transparência e o direito à participação em nosso Programa de Aceleração. E, internacionalmente, passando a integrar a Aliança Latinoamericana para Civic Technology e também a CivTech Alliance, uma rede mundial de organizações públicas, privadas e do terceiro setor trabalhando em tecnologia cívica e governamental, justamente com o objetivo de apoiar e estimular o ecossistema que desenvolve produtos e serviços que tornam melhor a vida dos cidadãos e cidadãs.

É preciso zelar para que o apoio à democracia seja uma constante, embora os dados atuais possam ser desanimadores.

Esse valor que é tão fundamental se renova e fortalece com ações concretas e não há dúvidas de que o trabalho das civictechs será fundamental para esse processo que é tão urgente e atual.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/leticia-piccolotto/2021/02/20/o-digital-para-construir-a-democracia-o-que-sao-e-como-atuam-as-civictechs.htm