Você é alguém “diferenciado”? Saiba o que isso tem a ver com seu sofrimento

Christian Dunker

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)… além de youtuber.

15/01/2021 04h00

Muitos já observaram certa relação entre clima e saúde mental. Hipócrates afirmava que a melancolia começa na primavera, os britânicos se apavoram com a chegada do inverno.

Não creio que temperamento e temperatura tenham entre si outra relação a não ser o fato de que ambos criam em nós uma posição diante da mudança e da repetição, como que a dizer o que temos que aceitar, como uma fato da vida, se está chovendo ou faz sol, e o que podemos mudar segundo nossos desejos e vontades.

Por exemplo, a maneira como eu descrevo uma pedra, se eu a chamo de “stone” ou de “Steine”, se eu digo que ela contém vanádio ou chumbo, isso não altera em nada a pedra, ela mesma, em sua substância de “pedridade”.

Ocorre que em nossas experiências de sofrimento, a “substância” de nossa saúde mental parece desobedecer esta regra simples.

Se eu digo que meu vizinho é um “louco de pedra”, se eu leio um poema que me descreve como uma “pedra largada ao sol”, a versão que faço de mim, e dos outros em relação a mim altera quem eu sou e como eu sofro.

Deveríamos poder substituir descrições em terceira pessoa como: “faltam 21 gramas de serotonina em seu cérebro” por descrições em primeira pessoa, como “sinto-me triste e sem iniciativa, com dores nas costas e problemas para dormir”, mas na saúde mental, ao contrário de outras áreas médicas, a descrição que o paciente faz dos sintomas altera ou constitui os sintomas eles mesmos, mais ou menos como acontece na hipocondria.

O filósofo da ciência Ian Hacking mostrou como as ciências naturais, que descrevem tipos naturais, e ciências sociais, que descrevem tipos interativos, literalmente criam pessoas e doenças que afirmam curar.

Quando a Organização Mundial de Saúde redefiniu a saúde como “o mais completo estado de bem-estar bio-psico-social”, em vez de “ausência de doença”, ou o “silêncio dos órgãos”, isso não é apenas uma convenção normativa, mas parte da invenção de uma nova experiência de saúde.

Doravante não basta estar saudável (como uma pedra), mas é parte de possuir saúde sentir-se e interpretar-se como saudável. Vemos assim como sofrer depende tanto da narrativa de sofrimento quanto de uma gramática de reconhecimento e ainda de uma espécie de pragmática pela qual compartilhamos, derrogamos ou legitimamos “quem” pode sofrer “como”.

Entendemos também porque o “clima político” afeta nossas disposições de sofrimento. Isso não ocorre por causa de alguma substância tóxica no ar, que nos contamina com radiações de otimismo ou de pessimismo, mas porque discursos políticos contém necessariamente teorias de transformação.

Eles não querem nos convencer apenas de que a tese A é melhor do que B, mas que as mudanças em estados de mundo ocorrem segundo a causalidade C ou D, por exemplo, pela graça divina ou pelo trabalho dos homens.

A teoria de que o problema do país são as “maçãs podres” e que na hora que limparmos a casa, tudo melhora não envolve apenas uma concepção sobre a institucionalidade do país. Ela produz uma certa relação com nós mesmos, com o cuidado e destino que damos ao nosso sofrimento.

Notemos como a teoria da maçãs podres é uma análogo similar a pensar que o problema da sua vida são aqueles “quilinhos a mais”, ou que o que precisa mudar no seu marido é aquela “cervejinha de fim de semana” (que quase sempre vira uma “cervejona”).

A teoria da purificação pensa a transformação como eliminação do agente tóxico. O mal vem de fora, ele não depende de nós, nem foi criado por nós. Por isso a cura virá pela exclusão do agente maligno.

Uma dificuldade no tratamento do sofrimento psíquico é que ele tende a se autoconfirmar, buscando a realidade que ele precisa para se fazer reconhecer. Disso decorre que as pessoas que sofrem carregam também suas próprias teorias de transformação.

Teorias que são ao mesmo tempo políticas, estéticas, morais e religiosas. Se agarram a elas, como fonte segura dos problemas que têm pela frente e das soluções possíveis que estas condicionam.

A psicanálise se distingue, neste caso, não apenas por transformar o sofrimento, segundo a narrativa e as expectativas de reconhecimento que cada um criou para si, mas alterar a própria “teoria” da transformação a qual estamos apegados.

Mudemos o contexto.

A Constituição de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde, dois anos depois, representaram um esforço do Brasil para criar uma forma de vida em confronto ativo com o mal-estar.

A criação do SUS —depois a reforma psiquiátrica e depois ainda o Sistema Único de Assistência Social (SUAS)— generaliza a cobertura de saúde antes restrita aos que trabalham. Ela incorporou a mutação do conceito de saúde, do silêncio dos órgãos e da ausência de doença para o, assim definido pela Organização Mundial de Saúde, “mais completo estado de bem-estar bio-psico-social”.

A ideia de levar saúde de forma universal, integral e equitativa para todos, em um país de natureza federativa como o nosso, não tem muitos paralelos no mundo. Ainda mais quando se considera que este projeto ambicioso convive com patamares de financiamento que vão dos 3% aos 5% do PIB, quando países europeus chegam a 20% e a média africana é de 9%.

Contudo, quero chamar a atenção para o momento no qual este projeto acontece e para outra mutação, talvez inesperada, que o acompanha.

O Estado de Bem Estar Social surge no pós-guerra, no contexto do programa liberal de proteção do trabalhador. Ele responde à ancestral preocupação do Estado com as epidemias que ameaçam a soberania nacional e o adoecimento dos trabalhadores que prejudica a produtividade empresas.

Por isso, é preciso proteger a população do sofrimento, pois ele diminui o engajamento, aumenta o absenteísmo, altera imprevistamente a ocupação de postos ou pode manter pessoas envelhecidas indefinidamente em suas funções.

Um ano depois de abolirmos a escravidão, Bismarck criava a aposentadoria.

Vinte anos depois do “verão na praia”, símbolo da realização do estado de bem-estar social, nós criamos o SUS.

Entre uma coisa e outra infiltrou-se uma mudança inesperada.

Em 1974, Pinochet, no contexto do golpe de 1973, o neoliberalismo não é apenas a defesa da diminuição do Estado, ele traz consigo uma nova política para o sofrimento.

Por que em vez de proteger contra o sofrimento, não estimulamos o sofrimento como motor do aumento de produtividade?

Por que não demitir 10% dos empregados de uma empresa anualmente apenas para criar um clima paranoico, de reality show, e com isso fazer as pessoas se engajaram mais em suas tarefas?

Por que não praticar uma política esquizoide que faz os diferentes departamentos de uma empresa competirem entre si, de modo a criar uma pressão para aumentar o valor agregado de cada unidade e redução e custos?

Por que não valorizar os trabalhadores maníacos que se dedicam permanentemente com sangue nos olhos e imunidade (natural ou artificial) ao cansaço?

Por que não dar mais trabalho do que a pessoa pode aguentar fazer para aproveitar-se de seu sentimento de culpa, inadequação e insuficiência para extrair um a-mais de foco e dedicação?

Por que não criar trabalhos em regime precário ou intermitente, como o dos operadores de telemarketing ou dos caminhoneiros, de tal maneira que a métrica comparativa, a humilhação e agressividade contida de cada um possa se verter em mais resultados, ainda que com o efeito colateral epidêmico em termos de depressão e suicídio?

Ou seja, o desmanche do SUS, sua asfixia planejada, não é só parte de uma época de “vacas magras”, mas depende desta reversão do sofrimento como algo a ser evitado para nossa aceitação tácita de que é preciso fazer sofrer, desenvolver técnicas de sofrimento em estrutura de gestão, para poder extrair mais e melhor resultados produtivos.

A ironia maior é que aqueles que hoje defendem a máquina de moer carne serão os mesmos que amanhã se queixarão por ter virado bagaço de cana.

Temos aqui um bom exemplo de como uma teoria da transformação envolve e manipula nossas experiências de sofrimento, tornando-nos mais passivos ou assujeitados.

Há gente que sofre calada e sozinha. Há outros que tornam sua insatisfação fonte e origem para a transformação de si ou do mundo. Há ainda aqueles que, no desprezo por seu próprio mal-estar, dedicam-se a explorar o sofrimento alheio.

Não faz muito que o Brasil constituiu uma nova valência política para o sofrimento, deslocando seu circuito de afetos do medo e da inveja, típicos da cultura de condomínio, para o ódio e a intolerância.

O investimento na indiferença e individualização do sofrimento é agora colhido na forma da violência. Reagimos a isso empobrecendo nossa imaginação política, apelando por mais e melhores leis, por instituições mais fortes e mais duras ou por líderes melhores e mais poderosos.

Há outra resposta possível. Trata-se de advogar uma política menor, que começasse no cotidiano miúdo da recuperação da escuta e da fala e que seja capaz de reinventar a experiência da intimidade como partilha do desconhecido.

Um retorno desta paixão pela ignorância criadora tem como tarefa reverter a ascensão do novo irracionalismo brasileiro e sua alergia de arte, cultura e debate intelectual.

Contra a soberba dos convictos e a guerra das identidades que fermentam um fundamentalismo à brasileira é preciso uma retomada do comum.

Descobrir que o mais íntimo está fora de nós.

Lembrar que nossa identidade não é o último capital humano que nos resta.

Suspender a equação que nos faz pensar que o Estado é o dono do espaço público assim como o mercado é a única lei dos espaços privados.

Entre o desabrigo de um e a precarização do outro é necessária uma nova política para o sofrimento. Ela começa pelo reconhecimento do comum e da intimidade.

Diante do imperativo de felicidade e do conformismo de uma vida em estado de risco, exceção e sobrevivência é preciso levar mais a sério o potencial transformativo dos que sofrem. Reconhecer o fragmento de verdade que existe nas contradições de nossos desejos.

Podemos nos manter indiferentes diante da sua depressão, da sua hiperatividade, da sua anorexia. Desde que ela não aconteça na sua família, na sua escola ou na sua empresa. Desde que ela não atinja quem você ama, daí então perceberemos como o sofrimento nos faz comuns.

Esquecemos de ser “comuns” uns aos outros porque agora todos somos “alguém”. Alguém especial, diferenciado e cheio de talentos. Todos com exceção dos invisíveis e dos zumbis. Todos com exceção das mulheres seviciadas nos ônibus, dos marrons, gays, negros de periferia, craqueiros, desempregados, vítimas do Estado, jovens suicidas, vítimas do mercado, portadores de neurodiversidades, ribeirinhos desalojados por construções de hidroelétricas.

Pensando bem todos nós podemos entrar nesta lista.

Como dizia Lacan, o universal são as exceções. Mas o sofrimento não torna ninguém pior ou melhor por si mesmo. Ele não é desculpa nem mérito.

Consumidos por uma lógica judicialista, para a qual tudo é contrato e propriedade, só conhecemos vítimas e carrascos, senhores e escravos. Nos tornamos revolucionários indignados, purificadores de almas, alheias e próprias.

Mães de WhatsApp perseguindo filhos alheios. Pais protegendo seus filhos da nudez artística. Filhos para os quais todo o mal vem de fora. Todos unidos em torno da ideia de que a contrariedade é injustiça contra o consumidor.

Nossos pacientes queixam-se cada vez mais da rarefação da intimidade, da ausência da experiência comum, seja no amor seja na política.

Entre sofrer calado, sozinho e em pílulas ou reunir-se ao coro dos descontentes, indignados e purificadores precisamos de outra política para o sofrimento. Escolher o que fazer com seu sofrimento é uma escolha ética e também política.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2021/01/15/teorias-da-transformacao-e-tecnologias-do-cuidado.htm