Todos somos atletas. O começo do resto de nossas vidas


Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é escritora e jornalista há 25 anos. Foi chefe de imprensa dos esportes aquáticos do Brasil e é membro da comissão de mídia da Federação Internacional de Natação. Tem dois romances premiados: Água de barrela e O crime do cais do Valongo.

29/12/2020 04h00

Última semana e última coluna do ano. Todo mundo esperando aquela retrospectiva da desgraça, aquele retrovisor de tantas polêmicas, aquele “textão” exortando à superação e a concórdia. Bem…Texto grande toda coluna é, mas o restante todo mundo já sabe. No fundo sabemos. Apenas é preciso relembrar que ano novo é sempre o começo do resto das nossas vidas; aliás, todo minuto também, pois a ampulheta está sempre virada. Desta forma, convém não desperdiçar material tão precioso. E falar de esporte é, em última análise, falar sobre tempo. O corpo no tempo e vice-versa. Encerro falando dos dois.

Milésimos de segundo são a diferença entre a eliminatória, a semifinal, a final, o bronze, a prata, o ouro ou o nada. O jogador tem 90 minutos para fazer o que precisa ou um pouco mais se acontecer prorrogação, pênaltis, etc e tal… mas não passa muito disto. O tempo é sempre um desafio e um limite involuntário.

O ano de 2020 foi pródigo em nos dizer que a gente gasta horas demais com coisa inútil. Ele fez uma bagunça no calendário e jogou na nossa cara certas urgências, como aquele árbitro que já está com o apito na boca. A pandemia e seus efeitos não desaparecerão no passe de mágica da virada da meia-noite para o minuto número um, mas este pode sim ser um momento de respiro.

Estudando sobre o fim da Gripe Espanhola, fiquei imaginando o primeiro Carnaval que, dizem, foi uma loucura. Gente seminua (para os padrões da época) cantando nas ruas, estádios lotados, muita festa… Estamos ansiosos por viver esta explosão, mas, por enquanto, não dá para se jogar neste êxtase deixando o cérebro de lado. Esporte é sobre tempo, mas é principalmente sobre corpo. E corpo vivo!

O corpo mais que a regra, mais que a política, mais que a ideologia, mais que a mídia, mais que a guerra da narrativa. O corpo feito de vários corpos que é a torcida ou um time; aquela massa que se move solitária na água ou em uma pista. O corpo que faz o gol e também faz o ponto, que bate na linha de chegada, saca, arremessa, pula, golpeia, corre e nada.

O corpo quer existir; a despeito do que façamos contra, ele vai lutar para seguir vivo. Então, se você é negligente com a coletividade, saiba que caso você pare em um hospital, o teu corpo vai brigar para seguir respirando e talvez tire o lugar de alguém que fez todo o possível para não chegar até ali e que não terá a chance de assistir à luta olímpica do próprio corpo contra a doença, pois alguém que não se importou está lá. No fim das contas, somos todos atletas.

As arquibancadas humanas estão interligadas. Uma depende da outra, e os corpos vão brigar ferozmente para terem o direito de viver o minuto seguinte do resto de suas existências. O esporte e a arte são a celebração desta fagulha de vida. E se é para seguir a tradição e formular um desejo de ano novo, que em 2021 deixemos mais alertas os nossos sentidos e a nossa consciência corporal comunitária cresça a ponto de não precisarmos mais alertar sobre isto, pois…

A partida sempre segue. Avante!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/eliana-alves-cruz/2020/12/29/todos-somos-atletas-ou-comeco-do-resto-de-nossas-vidas.htm