Tchau, Daniel

Rodrigo Mora

O blog Mora nos Clássicos contará as grandes histórias sobre as pessoas e os carros do universo antigomobilista. Nesse percurso, visitará museus, eventos e encontros de automóveis antigos – com um pouco de sorte, dirigirá alguns deles também.

Colunista do UOL

17/04/2021 12h32

(SÃO PAULO) Ouvi dizer que a BMW já planeja a estreia do novo M3 no Brasil. Aposto que sequer houve discussão na redação do Motor 1 sobre quem cobriria o lançamento, porque você amava os carros da BMW. “Que câmbio, que suspensão, motor seis em linha ronca demais”, me contaria depois de se lambuzar em alguma pista por aí. Mas e aquela grade estranha? “Esquece a grade. Com um carro daquele você nem pensa no tamanho da grade”.

No dia em que você morreu – 14 de abril deste ano atolado em tristeza, desespero e desesperança -, a Audi mostrou o Q4. Se bem te conheço, imagino sua cara dizendo “que design animal! E aquele painel? E o volante de quatro raios? SUV mais bonito da categoria, disparado”.

Não consigo descrever exatamente sua expressão e o jeito da mão sentenciando suas fortes opiniões, mas os que te conhecem sabem do que estou falando. E antes de o carro chegar você já delinearia exatamente a estratégia da marca, analisando hipóteses, cenários e sequências que poucos vão enxergar mesmo quando o tal Q4 estiver ali, na nossa frente.

Essa visão que ultrapassava o elementar te diferenciava. Bem, seus textos, seu conhecimento técnico, sua sensibilidade, sua inquietude e seu amor incondicional por automóveis também.

Fico pensando nos carros que você vai perder agora que se foi, por óbvio cedo demais. Cada um que passar por mim, não poderei evitar, despertará a dúvida: Daniel ia gostar?

Mas eles – Q4, M3 e todos os outros que ainda nem saíram das pranchetas – que não se enganem, pois também perdem o privilégio de terem suas almas por você desvendadas. Foi assim com todos que testara nos últimos 20 anos, do “ixish” 35 ao Boxster, seu projeto de diversão depois dos 50.

Por essa dedicação tão pura à profissão que é parte intrínseca de mim é que nas eleições de melhor jornalista automotivo – me arrependo agora por não ter te contado antes – eu sempre votava em você, no Sodré, no Calmon e no Jason. Descaradamente, às vezes também votava mim, num autoengano para me ver à sua altura.

Foram muitos test drives dividindo opiniões sobre o que estávamos dirigindo, dando e recebendo conselhos, compartilhando sonhos e angústias. Formamos dupla em Campos do Jordão, Mendoza, Reykjavík, Campinas, Michigan e tantos outros lugares mundo afora. Se eu soubesse que aquele no México pra conhecer o Versa, em janeiro do ano passado, seria o último contigo…

Éramos muito diferentes. Divergíamos sobre política, dinheiro, musas e música (nisso concordávamos em relação ao Paul, cujo show de 2010 me parece o marco inicial da nossa amizade). Jamais faltara nos teus gestos tolerância e respeito, no entanto. Discutíamos e discordávamos, mas cinco minutos depois a generosidade e o bom humor que não cabiam naquele barrigão cultivado nos anos recentes apagavam tudo.

Sua ausência esfrega na minha cara, provavelmente com razão, que retribuí pouco tanta camaradagem. Mas alivia lembrar que era você jantando na casa dos meus pais celebrando minha ida pra Folha; não cabia muita gente em casa no primeiro aniversário do Bernardo, mas lá estavam você e Raquel; quando fiz 35, éramos nós dois em Juqueí passando uma tarde de folga. Nos levamos um para a família do outro – sua mãe se considerava uma avó postiça do Bernardo, afinal.

Transbordam nas redes sociais agora declarações sobre sua grandeza como jornalista, amigo, marido, irmão, filho, cunhado, genro e pai. Puta que pariu, como era nítido que você seria um paizão da porra. Era só ver como você tratava bem o meu filho muito antes de ter o seu. Falando em filho, no que depender de mim o Enzo vai ser mais um gearhead, fique tranquilo.

Você já faz muita falta aqui, meu amigo. E vai fazer mais amanhã, depois e depois. Disso não poderemos escapar.

Nem de M3.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/carros/colunas/mora-nos-classicos/2021/04/17/tchau-daniel.htm