Sem auxílio emergencial para transporte, podemos reviver protestos de 2013

Kelly Fernandes

Arquiteta e urbanista pela FAU-Mackenzie e especialista em Economia Urbana e Gestão Pública pela PUC/SP. Profissionalmente atua como pesquisadora em mobilidade urbana e é envolvida com a defesa dos direitos de quem anda a pé, pedala e usa transporte público.

Colunista do UOL

18/12/2020 04h00

A trajetória do auxílio emergencial que destinaria R$ 4 bilhões para estados e municípios com mais 200 mil habitantes manterem os serviços de transporte público coletivo em funcionamento chega ao fim. Iniciada em abril deste ano, durante a edição da medida provisória 936, virou o projeto de lei 2025/20, que foi deixado de lado.

Em contrapartida, avançou o PL 3364/20 que, após ter sido aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, foi vetado pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido), ou seja, foi negado. Ação irreversível em vista do fim da vigência do Decreto Legislativo Nº6, medida que reconheceu o estado de calamidade pública em meio a emergência da pandemia, e o fim do ano orçamentário, ambos com término em dezembro e vinculados à medida barrada pelo governo.

A notícia foi mal recebida por gestores públicos e entidades que representam empresas do setor, que já acumulam perdas da ordem de R$ 14 bilhões, indicando até uma possível paralisação do transporte público coletivo.

Com a redução gradual da quantidade de pessoas que utilizam o sistema, acentuada por conta da crise sanitária e humanitária, persiste a pergunta que tem sido feita repetidas vezes por especialistas e entidades da sociedade civil: De onde virá o dinheiro para pagar a conta do transporte público coletivo e mantê-lo em funcionamento?

Apesar desse descompromisso do Governo Federal com a resposta dessa questão, que insiste em jogar a responsabilidade para municípios e estados, enquanto alega ausência de recursos para atender essa finalidade, dados da pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) de tema “Incentivos e subsídios ao consumo de combustíveis fósseis no Brasil” revelam que, só em 2019, o poder público deu incentivos e subsídios da ordem de R$ 63 bilhões ao consumo de combustíveis, em relação à produção o valor ultrapassa 36 bilhões.

De acordo com Cleo Manhas, assessora de políticas do Inesc, o volume dos recursos que deixam de ser arrecadados demonstra as prioridades do poder público. Ao passo que esse beneficia determinados setores econômicos, retira recursos que poderiam ser destinados para a educação e para a seguridade social, a exemplo das isenções realizadas via PIS/Cofins para o diesel.

Manhas diz que a única política do Governo Federal para o transporte público coletivo são essas isenções, mesmo sendo o óleo diesel um combustível altamente poluente, à medida que persistem as ausências de recurso para a expansão da infraestrutura de transporte público coletivo, para o custeio do sistema e a mudança para uma matriz energética limpa para o transporte.

Olhando para a Cide-Combustíveis, a contribuição de intervenção de domínio econômico associada com o consumo de gasolina ou diesel, o estudo também aponta para o fato de o poder público ter deixado de arrecadar mais de R$ 47 bilhões em 2019. Recursos que poderiam ser utilizados para a implantação de faixas e corredores exclusivos de ônibus, proporcionando deslocamentos mais eficientes para quem usa o sistema.

Tudo isso em benefício de um único modelo de transporte que mergulhou as cidades brasileiras em um mar de carros, ar poluído e injustiça social. Deixando milhares de pessoas em ônibus lotados sujeitas a serem contaminadas com o novo coronavírus a qualquer momento, em um transporte cada vez mais caro, portanto menos acessível.

Falando em custos, é provável que os reajustes de tarifa, seguindo a tradição dos últimos anos, cheguem logo no início de 2021. Essa deliberação irá contribuir imediatamente com o aumento dos gastos com transporte em meio ao contexto de crise econômica que assola o país. Alguns especialistas indicam que em 2021 podemos viver um novo 2013, com manifestações espalhadas pelo Brasil motivadas por reajustes tarifários, como recentemente também aconteceu em Santiago, Chile.

Na capital chilena, a insatisfação popular acelerou mudanças e reforçou a narrativas de atores sociais e políticos que propunham alterações no financiamento, gestão e regimes de contratação de empresas, que ao serem realizados contribuíram com a redução dos custos do sistema, a ruptura de cartéis e com melhorias nos serviços de transporte coletivo, que contemplaram também a transição de uso de veículos movidos à combustíveis fósseis por ônibus movido à energia elétrica.

No Brasil, existe a urgência de construir novas fontes para o financiamento do sistema de transporte coletivo, essencial à garantia do direito social ao transporte que carece de regulamentação.

Aliás, destaca Manhas, atualmente o gabinete de Luiza Erundina (PSOL) discute e elabora uma proposta legislativa para a construção de novas fontes de financiamento e fundos especiais para reuní-las, com vistas à universalização do transporte.

Ação que é mais uma braçada do poder legislativo em parceria com institutos de pesquisa e a sociedade civil, no sentido contrário ao retrocesso em políticas públicas de mobilidade e transporte.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/carros/colunas/kelly-fernandes/2020/12/18/sem-auxilio-emergencial-para-transporte-podemos-reviver-protestos-de-2013.htm