Se realmente já houve vida em Marte, como deve ter sido o ser marciano?

Daniel Schultz, Monica Matsumoto e Shridhar Jayanthi

sobre os colunistas

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. É formada em engenharia pelo ITA, doutora em ciências pela USP e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é agente de patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO). Tem doutorado em engenharia elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de engenheiro de computação pelo ITA. Atualmente, trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

14/03/2021 04h00

Já faz quase um mês que o Perseverance, o rover planetário da Nasa, anda perambulando por Marte. Ele explora a cratera de Jazero, que 3,5 bilhões de anos atrás era um grande lago alimentado pelo estuário de um rio. Se algum dia houve vida em Marte, provavelmente foi num local como esse.

Ao contrário dos rovers anteriores, o Perseverance não vai apenas analisar amostras da superfície marciana in loco, mas vai também preparar amostras para mandar de volta à Terra.

Ele possui uma broca capaz de retirar amostras de rochas do tamanho de um giz, que são encapsuladas num tubo de titânio e deixadas na superfície de Marte. Depois, uma missão subsequente vai recolher essas amostras e transferi-las a um módulo em órbita. Por fim, uma terceira missão vai trazer as amostras aos nossos laboratórios aqui na Terra, e pela primeira vez será possível usar nossas sofisticadas técnicas de microscopia para tentar enxergar estruturas celulares em amostras vindas diretamente de Marte.

O que podemos esperar dessas imagens? Se realmente já houve vida em Marte, com o que se pareceria?

Apesar de nenhuma de nossas missões ainda terem retornado de Marte, já dispomos de algumas amostras de sua superfície.

Os dois planetas trocam material através de fragmentos lançados ao espaço pelo impacto de asteroides. Uma dessas rochas, a ALH84001, foi formada a 4,5 bilhões de anos em Marte, e lá permaneceu até aproximadamente 16 milhões de anos atrás, quando foi desalojada de seu planeta original.

Depois de vagar pelo Sistema Solar até 13 mil anos atrás, finalmente caiu na Antártica, onde foi descoberta em 1984. Esse apresentava uma combinação de carbonatos e minerais que na Terra é associada à ação de microorganismos. Também continha hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e outros compostos orgânicos. Em sulcos na rocha, também era possível observar pequenas estruturas que pareciam fósseis de microorganismos.

Essas notícias foram inicialmente recebidas com muita excitação, mas como dizia Carl Sagan, descobertas extraordinárias necessitam de evidências extraordinárias. Hoje em dia, a maioria da comunidade científica acredita que as pequenas estruturas se tratam apenas de formações minerais, mas mesmo assim Marte começava a parecer cada vez menos estéril.

Mas caso realmente houvesse vida em Marte, que tipo de micróbios poderíamos esperar? A resposta pode estar aqui mesmo na Terra.

Microorganismos conhecidos como “extremófilos” são adaptados para viver nas condições mais adversas, e estão entre os organismos mais primitivos que conhecemos. Vários desses organismos possuem características necessárias para a vida em Marte.

Talvez o mais famoso deles seja o Deinococcus radiodurans, que suporta altas doses de radiação, frio intenso e desidratação. Esse micróbio inclusive já sobreviveu do lado de fora de uma estação espacial por um ano inteiro.

Outra classe interessante de extremófilos é a dos metanogênicos, que não precisam de luz, oxigênio ou nutrientes orgânicos. Esses organismos usam hidrogênio e gás carbônico como fonte de energia, produzindo metano, perfeito para sobreviver na atmosfera de Marte. Estão presentes nos ambientes mais diversos na Terra, inclusive nos solos congelados da tundra no Ártico, em condições muito parecidas com os repositórios de água que ainda existem sob a superfície de Marte.

Recentemente, cientistas da Universidade de Viena resolveram recriar um pedacinho de Marte na Terra para testar a capacidade dos extremófilos de sobreviver no Planeta Vermelho.

Pulverizaram um pedacinho de um outro meteorito vindo de Marte, conhecido como “Beleza Negra”, formado por vários fragmentos da crosta marciana. Em um biorreator com uma atmosfera rica em gás carbônico, essa amostra foi colonizada pela archaea termoacidofílica Metallosphaera sedula.

Esse organismo foi escolhido por ser capaz de fixar o carbono da atmosfera e converter os minerais da rocha em energia. E foi exatamente o que ocorreu. O micróbio cresceu pela rocha deixando para trás depósitos biominerais, que depois foram estudados por microscopia eletrônica.

Agora que sabemos como esses depósitos se parecem, fica mais fácil saber o que procurar nas amostras trazidas pelo rover Perseverance.

Enquanto isso, o debate continua, mas a possibilidade de encontrarmos vida em Marte, uma ideia já antiga, vai sendo considerada cada vez com mais seriedade.

As condições são favoráveis e as peças vão se encaixando, mas temos que saber o que e onde procurar. Antes de achar a agulha no palheiro, é preciso saber se a agulha marciana realmente se parece com a terrestre.

Nesse processo, é fundamental aprender a reconhecer as “bioassinaturas” em processos minerais, certas formas e padrões encontrados em rochas que seriam extremamente difíceis de se imaginar em ambientes desprovidos de seres vivos. Assim como os estromatolitos encontrados na Austrália, as mais antigas evidências de vida na Terra.

Os cientistas do ramo (depois de muita discussão) definiram a vida como um “sistema químico autossustentável capaz de submeter-se a evolução darwiniana”.

Talvez a vida extraterrestre nesses termos seja um pouco menos excitante que os E.T.’s altamente tecnológicos que um dia esperamos encontrar. Mas talvez esteja a altura do que podemos esperar de nosso planeta vizinho?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/para-onde-o-mundo-vai/2021/03/14/os-microbios-de-marte.htm