Remunerar depósitos no BC moderniza política econômica, mas não é consenso

José Paulo Kupfer

Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito “Jornalista Econômico de 2015” pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.

02/11/2020 04h00

Duas votações importantes estão previstas para esta terça-feira (3), no Senado Federal. Estão na pauta do dia os projetos de lei que definem a autonomia formal dos diretores do Banco Central e o que passa a permitir depósitos remunerados voluntários dos bancos na instituição.

Os dois mecanismos já existem há bom tempo em várias partes do mundo, sendo usado pelos maiores bancos centrais do mundo, entre eles o Federal Reserve americano e o BCE (Banco Central Europeu). Mas, no Brasil, ainda são motivo de polêmica e discórdias. Em razão dessa ausência de consenso, não é garantido que as votações não possam ser adiadas.

Permitir que o BC remunere depósitos voluntários dos bancos na instituição significa, num resumo simplificado, abrir espaço para que a autoridade monetária controle o volume de dinheiro em circulação sem produzir dívida mobiliária pública. Atualmente, para administrar a chamada liquidez monetária, e manter a taxa básica fixada pelo Copom (Comitê de Política Monetária), o BC é obrigado a recorrer ao Tesouro Nacional, que é quem pode emitir títulos públicos.

Os títulos, emitidos pelo Tesouro, são vendidos às instituições financeiras com o compromisso de recompra, em certos prazos, em geral bem curtos, e pagando taxas de juros referenciadas pela taxa básica (taxa Selic). Com isso, a dívida pública cresce, em razão de uma operação de gestão monetária, não pela expansão de gasto público.

Com a criação de um mecanismo que permita ao BC administrar a liquidez da economia sem necessitar do lastro dos títulos públicos, promove-se uma desejável separação entre BC e Tesouro Nacional, assim como entre a política monetária e a política fiscal. A dívida pública, que hoje espelha tanto o aumento de gastos sem a devida cobertura de receitas quanto operações de caráter monetário, sem criação efetiva de despesas públicas, passará a refletir apenas as movimentações da política fiscal. Executada com os devidos cuidados, as operações de remuneração de depósitos no BC trarão modernização e transparência para a condução da política econômica.

O controle da liquidez monetária na economia, atualmente, é feito com a emissão pelo Tesouro de títulos com compromisso de recompra. O volume dessas operações, chamadas de compromissadas, vem crescendo há décadas, chegando, em agosto deste ano, a R$ 1,8 trilhão, o equivalente a 26% do PIB e representando mais de um quinto da dívida pública bruta. Se for autorizado a aceitar depósitos voluntários, remunerando os bancos que aplicarem suas sobras de caixa, o BC continuará fazendo dívida. Mas essa dívida irá compor o passivo monetário da instituição, evitando a emissão de título públicos e, consequentemente, o aumento da dívida.

Não haverá, se o projeto de remunerar depósitos voluntários de instituições financeiras no BC for aprovado, alteração abrupta nesta situação. Apenas para dar uma ideia, se todas as compromissadas fossem substituídas de uma vez por depósitos remunerados, a dívida pública ficaria, imediatamente, pelo menos 20% menor.

O projeto de lei de que permite a adoção dos depósitos remunerados, em substituição às operações compromissadas, é uma iniciativa do senador do PT de Sergipe Rogério Carvalho. O projeto conta com apoio de outros partidos e recebeu parecer favorável da relatora, senadora Katia Abreu (PP-TO).

Em seu parecer, contudo, Katia Abreu propôs modificações no texto original. A principal diferença é que o projeto de Carvalho determina, explicitamente, que o BC não pode remunerar os depósitos voluntários a taxa maiores do que as pagas pelo Tesouro em títulos de prazo com vencimento equivalente, enquanto Katia Abreu deixa ao próprio BC a liberdade para fixar taxas, prazos e formas de negociação. Essa mesma autorização constava de um outro projeto de lei, de 2017, enviado ao Congresso pelo governo Temer, que se encontra parado na Câmara dos Deputados.

A forma de remunerar os depósitos voluntários é exatamente uma das questões que faz com que o projeto alimente polêmicas e divergências, tanto entre especialistas do lado direito quanto do lado esquerdo do espectro politico. À esquerda, por exemplo, há temores de que o BC seja excessivamente generoso com os bancos, transferindo a eles recursos públicos que poderiam ser usados em outras prioridades, sobretudo sociais.

À parte o fato de que o passivo monetário do BC não tem nenhum tipo de vaso comunicante com o orçamento fiscal, não havendo, portanto, essa hipótese de desvio de recursos entre prioridades, são, de fato, necessários cuidados na fixação das taxas e prazos dos depósitos remunerados, cujo objetivo é o controle a liquidez de dinheiro na economia, para que não concorram com os títulos oferecidos pelo Tesouro, necessários para a rolagem da dívida fiscal.

Já entre especialistas mais alinhados à direita do espectro político, que em geral comungam visões econômicas mais ortodoxas e neoliberais, o risco da aprovação dos depósitos voluntários remunerados no BC é o de camuflar a magnitude da dívida pública, encobrindo um excesso de gastos públicos. A crítica desse grupo considera que o novo mecanismo configuraria uma autêntica pedalada fiscal, ao “esconder” parte do endividamento do governo.

Trata-se de hipótese sem base na realidade, até porque, tanto no projeto do senador Rogério Carvalho, quanto nas alterações sugeridas pela relatora Katia Abreu, o BC passa a ser obrigado a prestar contas regulares ao Senado da administração dos depósitos remunerados. Aprovada o mecanismo, o BC seria obrigado fornecer informações sobre o nível de liquidez da economia e dos títulos mantidos em suas carteiras, bem como o acolhimento dos depósitos remunerados e sua gestão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://economia.uol.com.br/colunas/jose-paulo-kupfer/2020/11/02/remunerar-depositos-no-bc-moderniza-politica-economica-mas-nao-e-consenso.htm

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