Regulação das plataformas, sim. Regulação da internet, não

Cristina de Luca

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Colunista de Tilt

31/10/2020 10h24

A pandemia de covid-19 destacou ainda mais o poder de mercado de grandes empresas de tecnologia e a inadequação da atual governança e regulamentação digital. O que os formuladores de políticas devem fazer para lidar com a influência crescente das “big techs” e construir uma economia digital igualitária? Está aí uma pergunta difícil de responder.

Primeiro porque são muitos assuntos que têm preocupado os reguladores, da moderação de conteúdo e suas implicações para a liberdade de expressão e a manipulação da opinião, individual e pública, às questões tributárias e de infrações à ordem econômica e às políticas concorrenciais. A audiência antitruste do Congresso, em 29 de julho, mostrou que eles não podem mais evitar o brilho severo dos holofotes sobre seus modelos e práticas de negócios.

Essa semana – decisiva para a corrida eleitoral americana – foi emblemática no tocante a tudo o que está em jogo quanto ao poder nas mãos do grupo FAANG (Google), mais Twitter e Microsoft.

Apple, Amazon, Facebook e Alphabet reportaram ganhos expressivos no terceiro trimestre. Juntos somam mais de US$ 228 bilhões em receita e mais de US$ 38 bilhões em lucro. E muito desse resultado financeiro fora da curva foi provocado pela recuperação das receitas de publicidade, graças ao reaquecimento do mercado publicitário em todo mundo, particularmente nos Estados Unidos.

Além disso, todos os serviços que tornaram a vida muito melhor sob as regras de distanciamento social —de trabalho remoto a compras online e serviços de streaming— estão disponíveis apenas para aqueles com acesso a uma conexão de internet razoavelmente rápida e confiável e hardware adequado. O que fez os serviços das “big techs” explodirem em acesso.

Concentrações maciças de poder econômico tendem a gerar influência política. Devido ao seu tamanho crescente, o setor de tecnologia fornece contribuições de campanha significativas e mantém pelotões de lobistas e advogados em Washington, DC. Bem mais do que costumam fazer também aqui, no Brasil.

Todo esse poder tem gerado bons resultados: brechas fiscais, subsídios, isenções regulatórias e outras formas de generosidade governamental que não estão disponíveis para empresas menores.

Ainda que ontem, os executivos-chefe do Twitter, do Google e do Facebook não tenham escapado de comparecer ao Comitê Judiciário do Senado dos Estados Unidos para darem explicações sobre uma outra questão: o seu poder social derivado do controle que exercem sobre os fluxos de comunicação dos quais as pessoas dependem para compreender o mundo. Os senadores quiserem saber, principalmente, sobre práticas de moderação e remoção de conteúdo.

Os executivos foram duramente questionados pelos legisladores não só a respeito da Seção 230 — que isenta as plataformas de responsabilidade legal pelo conteúdo gerado por seus usuários — mas também sobre pontos como privacidade, algoritmos e a classificação dos conteúdos como enganosos ou não, sobretudo em assuntos eleitorais.

Outro aspecto do poder social das “big techs” é sua crescente capacidade de reunir e analisar dados sobre todos os aspectos de nossas vidas, escolhas e atitudes. Isso não apenas prejudica nossa privacidade; desafia nossa própria autonomia. A publicidade direcionada não responde apenas às necessidades e desejos do consumidor. Ele molda nossa compreensão de nós mesmos, de nossas comunidades e do mundo.

Em relação a essa questão, também essa semana o Facebook tentou proibir pesquisadores do NYU Ad Observatory de coletarem dados para examinar como os anúncios políticos são direcionados na plataforma. No entender da rede social, o projeto viola cláusulas de seus termos de serviço que proíbem a coleta de dados em massa.

O confronto que ocorre justo no momento de maior escrutínio sobre a propaganda política nas redes sociais antes da eleição. O Facebook já prometeu barrar novos anúncios políticos antes do dia da eleição e suspender todos os anúncios políticos na noite do dia 3 de novembro para evitar a disseminação de desinformação paga sobre os resultados da votação. Por isso, e por vários outros motivos, a exigência do Facebook de que os pesquisadores interrompam o estudo vem sendo duramente criticadas por todos que defendem maior transparência sobre publicidade direcionada e conteúdo impulsionado na plataforma.

“É inaceitável que, no meio de uma eleição, o Facebook esteja tornando mais difícil para os americanos obterem informações sobre anúncios políticos online”, disse Klobuchar em um comunicado ao The Wall Street Journal.

E as coisas podem realmente ficar ainda mais difíceis na próxima semana. “Estou preocupado que, com nosso país tão dividido e os resultados das eleições levando dias ou semanas para serem finalizados, haja o risco de agitação civil em todo o país”, disse Zuckerberg na teleconferência de resultados da empresa ontem. “Diante disso, empresas como a nossa precisam ir muito além do que fizemos antes.” Como? Foi parte do que os senadores tentaram entender ontem.

Essas três formas de poder – econômico, político e social – estão enraizadas no domínio crescente das “big techs” sobre os mercados, informações e comunicações. E esse domínio é função do tamanho e do escopo dessas empresas.

A América respondeu aos abusos do poder corporativo na Era Dourada com legislações antitruste que permitiram ao governo quebrar o poder econômico concentrado. É hora de usar o antitruste novamente.

Até aqui, no entanto, a União Europeia está muito à frente dos EUA no que diz respeito a regulamentar, tributar e restringir a “big techs”. A Comissão Europeia conduziu diversos processos antitruste contra os gigantes da tecnologia, bem como iniciativas mais amplas, como a proposta de Lei de Serviços Digitais. Margrethe Vestager – anteriormente comissária europeia para a competição e atualmente vice-presidente executiva da Comissão Europeia para uma Europa adequada à era digital – liderou o caminho nesta frente.

Afinal de contas, as empresas de tecnologia são efetivamente entidades supranacionais que operam fora do alcance dos estados, permitindo-lhes participar de arbitragem tributária e regulatória.

No entanto, todo esse movimento pró regulação das “big techs”- necessário, sob muitos aspectos – tem uma face perversa: a de risco de que os esforços de resolução das questões anticoncorrenciais, de moderação de conteúdo e de manipulação de dados pessoais acabem desaguando em apelos de regulação da própria internet. O que seria um erro. Nenhum dos problemas das “big techs” ocorrem nas camadas de infraestrutura física (os cabos, por exemplo) ou lógica (os protocolos) da rede. Elas acontecem na camada de aplicações da internet.

Quanto maior a pressão para tentar fazer a internet se encaixar dentro das fronteiras nacionais ou para torná-la compatível com o pensamento normativo de uma nação com o objetivo de manter algum senso de controle sobre as aplicações, mais nos arriscamos a sabotar os pilares da internet, que fazem dela uma rede resiliência: ser aberta, livre e distribuída.

Tenho ouvido muito a frase “a internet está doente”, não raro sendo repetida por gente que não faz a menor ideia do que há por trás da afirmação. Infelizmente, para essas pessoas, e felizmente para maioria da humanidade, a rede tem sido de uma resiliência atroz.

De fato, como já pontuaram muito bem Carl Shapiro e Hal R Varian, no livro “Information Rules”, a arquitetura distribuída da internet não anulou os efeitos da economia de rede que possuem tendências monopolistas e concentradoras. Tampouco impediu a concentração das audiências nas plataformas. Também não impossibilitou a vigilância massiva. E muitos governos se beneficiaram disso.

Seríamos capazes hoje de reativar o multilaterismo que possibilitou o surgimento da internet como ela é, para definir as melhores práticas, monitorar os riscos decorrentes dos novos produtos e serviços criados sobre ela (incluindo seu impacto na sociedade civil) e desenvolver intervenções regulatórias e políticas para enfrentá-los? Propor novos modelos de governança econômica decorrentes da digitalização de tudo?

São dilemas que todas as nações terão que enfrentar, mais cedo ou mais tarde. E os organismos multilaterais, como a ONU, a OMC, a OCDE, também. Mitigar os efeitos adversos do domínio digital vai requerer abordagens holísticas para governança de plataforma e dados.

Na opinião de Paulo Rená, Paulo Rená, Professor e pesquisador na UniCEUB e ativista do IBIDEM, ONG integrante da Coalizão Direitos na Rede, a regulação econômica tem história e condições de ser aplicada com a complexidade necessária, ao passo que a regulação técnica da internet sempre teve por parâmetro ter uma lógica da simplicidade, deixando a inteligência para “as pontas”. “Então jogar complexidade para estrutura da rede iria comprometer o seu funcionamento, se não agora, no futuro. Não por impedir as operações, mas por limitar o desenvolvimento e a inovação. Acho inclusive que a regulação econômica dos agentes vem com atraso”, diz ele.

Precisamos tomar decisões que exerçam jurisdição extraterritorialmente de forma a permitir que a internet evolua como uma tecnologia aberta, globalmente conectada, segura e confiável para todas as pessoas. Acredita-se que o e-commerce será a ponta de lança desta regulação digital global, uma vez que já está sendo praticado de forma significativa no cross-border. Precisamos também ajustar as regulações nacionais para dar conta única e exclusivamente das particularidades sociopolíticas e econômicas na camada de aplicação. Os governos têm sido muito lentos em adaptar leis e regulamentos para construir uma economia digital equitativa.

Uma internet balcanizada tornaria muito mais difícil abordar as preocupações específicas sobre as “big techs” e instituir padrões globais sobre o uso de dados, inteligência artificial e outros recursos da economia digital.

Sim, as grandes empresas de tecnologia ganham valor com ativos intangíveis, como dados, algoritmos e propriedade intelectual, em vez de apenas ativos tangíveis, como trabalho físico ou bens e serviços. Por isso, há quem defenda a criação de novos modelos de governança para a economia digital, que inclua um novo fórum para coordenação diplomática e global dos esforços de definição definir dos padrões e regulamentações globais para a economia da plataforma. Lá em cima, na camada de aplicação.

Essa instituição poderia aconselhar sobre as melhores práticas, monitorar os riscos decorrentes de novas tecnologias (incluindo seu impacto na sociedade civil) e desenvolver intervenções regulatórias e políticas para enfrentá-los.

Estamos diante de um grande dilema. Como o mundo atual tem se fragmentado cada vez mais, do ponto de vista comercial, o bloco ou o país que sair na frente tem grande chance de estabelecer parâmetros para um debate internacional. Por isso é tão importante para os americanos que eles tomem a dianteira de se debrucem sobre o poderio das “big techs” que nasceram da crença americana na Economia do Conhecimento.

Os próximos anos serão desafiadores, senhores. Há muito jogo. Será que estamos preparados, como país, para esse debate, como estivemos na época do surgimento da internet?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/cristina-de-luca/2020/10/31/regulacao-das-plataformas-sim-regulacao-da-internet-nao.htm