Privatização proposta por Bolsonaro é dúbia e atende interesses políticos

Cleveland Prates

Economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP. Foi Conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e secretário-adjunto da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.

10/03/2021 04h00

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro foi ao Congresso Nacional entregar pessoalmente duas propostas que, em sua visão, seriam a prova de que seu governo iniciou finalmente o programa de privatizações apresentado em sua campanha eleitoral. A primeira delas envolve o que chamaram de desestatização da Eletrobras (Medida Provisória 1.031/2021). Já a segunda refere-se à organização e à manutenção do Sistema Nacional de Serviços Postais (Projeto de Lei 591/2021). Coincidência ou não, isso ocorreu exatamente no momento em que Bolsonaro sofria pesadas críticas pela forma atabalhoada que decidiu trocar o presidente da Petrobras.

É de conhecimento público que o atual presidente da República nunca foi um fã da ideia de privatização. Já deu declarações públicas recentes mostrando-se contrário à venda da Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica e até mesmo do Ceagesp, em São Paulo.

Privatizar nunca é uma tarefa fácil, principalmente porque envolve sempre interesses de corporações de funcionários públicos e, principalmente, de políticos. Que o diga Fernando Henrique Cardoso (FHC), que implementou o maior programa de privatizações da história do país até hoje. Mesmo sendo um político extremamente hábil e tendo uma das melhores equipes de economistas e advogados do país, acabou deixando de lado duas das mais importantes privatizações que poderiam ter mudado o rumo de muitas coisas no país: a da Petrobras e a do Sistema Eletrobras.

No caso da Petrobras, FHC tinha um estudo sobre sua mesa propondo alternativas que iam desde uma reestruturação abrangente do setor de óleo e gás, com a privatização fatiada da estatal para gerar concorrência, até a simples desmonopolização da área, apenas com abertura para a entrada de novas empresas. Infelizmente optou pela segunda e os resultados foram os piores possíveis. Mantivemos o monopólio de fato da Petrobras e assistimos a todo tipo de corrupção envolvendo a empresa.

Ruim também foi não se ter privatizado o Sistema Eletrobras durante a década de 90. A falta de recursos públicos para investimento no setor, o aumento progressivo da demanda e a forte crise hídrica do início do século nos levaram ao apagão do setor elétrico de 2001. Já em 2004, ao assumir o governo, o PT não só deixou de privatizar a Eletrobras, como também implementou um modelo engessado, cheio de subsídios cruzados e com poucos incentivos a investimento em eficiência. E isso sem falar da Medida Provisória 579/2012, durante o governo Dilma Rousseff, que descapitalizou o setor e deixou de herança uma conta bem salgada para os consumidores, que tem sido paga até hoje.

As lições tiradas das nossas escolhas foram claras. Menos eficiência, pouca concorrência, mais corrupção e mais interferência política nessas empresas. Entretanto, o governo Bolsonaro parece estar alheio a essas questões, na medida em que envia para o Congresso propostas que, além de não resolverem esses problemas, criam outros.

No caso da “desestatização” da Eletrobras, o equívoco já começa pelo próprio instrumento jurídico – Medida Provisória – que, por sua própria natureza, pode trazer uma forte insegurança jurídica para eventuais interessados no processo de capitalização da empresa. Mas para além desse aspecto, fica claro que o objetivo do governo não é entregar a Eletrobras para a iniciativa privada. Trata-se apenas de uma capitalização com emissão de novas ações, que, apesar de diluir a participação da União, manterá o Estado como acionista em posição de destaque, com forte poder de veto para mudanças estatutárias, uma vez que será criada uma ação preferencial de classe especial.

Na realidade, o que parece é que arrumaram apenas uma forma engenhosa para obter mais recursos, com o objetivo de equacionar a dívida da Eletrobras, renovar sua capacidade de investimento e manter subsídios no setor elétrico (por meio da Conta de Desenvolvimento Econômico – CDE). O segundo aspecto é particularmente o mais preocupante, uma vez que pode implicar a reversão de um processo gradativo de redução de participação direta do Estado no setor e de desconcentração nos segmentos de geração e transmissão de energia. Ao dar mais dinheiro à Eletrobras, é possível que a empresa volte a investir pesadamente, alterando incentivos no mercado e ampliando sua influência sobre as decisões do setor privado. O risco no fim do dia é que se eleve novamente a concentração no mercado, em prejuízo dos consumidores.

Com a proposta encaminhada ao Congresso, a Eletrobras também fica obrigada a realizar aportes financeiros para bancar políticas regionais, sem que haja qualquer discussão no âmbito do Orçamento da União sobre os custos e benefícios desses investimentos. A empresa deverá bancar, por exemplo, projetos de revitalização e transposição do rio São Francisco (R$ 3,5 bilhões) e outros relativos ao desenvolvimento de energia renovável na Amazônia Legal (R$ 2,95 bilhões). Ou seja, atribuições públicas para uma empresa que se quer privada, cuja conta será, mais uma vez, paga pelo consumidor.

Fato é que se houvesse realmente interesse em privatizar a Eletrobras, bastaria revogar dispositivo da Lei 10.848/2004 que excluiu a empresa e suas subsidiárias do Programa Nacional de Desestatização (PND). O problema é que essa Medida Provisória, mesmo revogando tal dispositivo, também limitou em seu texto a aplicação do PND à capitalização da empresa, não deixando qualquer previsão futura para uma “verdadeira privatização”, que exclua o setor público do negócio.

Já no caso do Projeto de Lei dos Serviços Postais, nitidamente não há que se falar em privatização, mas sim em autorização para transformar a Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) em uma Sociedade de Economia Mista, ou seja, apenas para a abertura do seu capital. Ademais, em que pese a iniciativa positiva de se tentar gerar mais concorrência no mercado de serviços postais (inclusive naqueles atualmente prestados em regime de monopólio pela ECT), o texto enviado permite a intepretação de que alguns segmentos competitivos e eficientes serão regulados. Mais precisamente, o texto traz a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para o setor, com o objetivo de estabelecer regras para o funcionamento do mercado, que podem ser estendidas para outros serviços, como o de encomendas expressas (comércio eletrônico, por exemplo).

No fundo, o que parece é que os dois textos levados ao Congresso foram apenas uma tentativa de dar uma satisfação ao mercado financeiro, cujo humor piorou substancialmente (principalmente dos estrangeiros) depois do que ocorreu com a Petrobras. Mais do que isso, as propostas apresentadas são dúbias e limitadas. Atendem aos anseios de seus apoiadores no Parlamento, mas não indicam uma vontade real do presidente de implementar um amplo e efetivo processo de privatização no país.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://economia.uol.com.br/colunas/cleveland-prates/2021/03/10/privatizacao-proposta-por-bolsonaro-e-dubia-e-atende-interesses-politicos.htm

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