Por que vender reservas em dólar, como estuda o governo, não é boa ideia

Cleveland Prates

Economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP. Foi Conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e secretário-adjunto da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.

02/12/2020 04h00

Recentemente, voltou mais à baila a discussão sobre a venda de parte de nossas reservas cambiais, só que desta vez não mais para investir em infraestrutura. Agora parece que o tiro vem do próprio Ministério da Economia, sob o argumento da necessidade de se reduzir a dívida pública (veja mais: Venda de reservas está no nosso cardápio de opções, diz secretário de Guedes). Particularmente eu vejo alguns problemas nesta estratégia, principalmente na situação atual.

Para compreender melhor o problema, devemos lembrar que o acúmulo de reservas cambiais decorre do fluxo passado de duas contas. A primeira é o “Saldo em Transações Correntes”, que computa a diferença entre exportação e importação de bens e serviços (mais o saldo das transferências unilaterais). A segunda é a “Conta de Capitais”, que engloba investimentos diretos e em carteira, este último de curto prazo e de alta volatilidade. Quando a soma do saldo das duas contas for positiva, entra divisa estrangeira na economia brasileira e vice-versa. Em geral o Banco Central (Bacen) toma a decisão de comprar as divisas estrangeiras baseada nos objetivos de política monetária e cambial. Quando decide comprar moeda estrangeira eleva o nível de reservas cambiais. Para isso é creditado na conta do “portador da moeda estrangeira” o valor correspondente em real.

O problema é que ao fazer isso, o Bacen eleva a Base Monetária na economia e, a depender da proporção que isso acontece, corre-se o risco de gerar inflação. Nessas circunstâncias, o governo pode “esterilizar” este processo, colocando títulos públicos à venda de maneira a retirar moeda de circulação. Em geral isso é realizado por meio do que se denomina operações compromissadas, transações de curto prazo, que pagam juros normalmente atrelados à taxa Selic. Ao fazer isso, eleva-se a dívida pública bruta, mas não a líquida, posto que essa última é resultado da diferença entre a bruta e o nível de reservas disponíveis.

A ideia subjacente à suposta proposta do governo nada mais é do que seguir o caminho inverso: vender dólares para resgatar títulos e, consequentemente, baixar a dívida pública bruta. Muito desta lógica teria por base o pressuposto de que incorremos em um custo líquido de carregamento dessas reservas muito elevado, o que não parecer ser verdade nos dias de hoje. Em um texto muito esclarecedor (Reservas Internacionais do Brasil: Evolução, Nível Adequado e Custo de Carregamento), o economista Josué Pellegrini do IFI – Instituto Fiscal Independente do Senado Federal detalha qual seria este custo.

De maneira resumida, o custo de carregamento das reservas pode ser inferido pela diferença entre: (i) os juros pagos pelo governo com as operações compromissadas; e (ii) o retorno obtido pelo governo pela posse das reservas (que incorpora os juros recebidos com aplicações no exterior e os ganhos derivados da desvalorização cambial, dado que as reservas são um ativo para o governo). Neste sentido, mantida a taxa Selic em 2%, e dadas as constantes desvalorizações cambiais, o resultado líquido da manutenção das reservas para o governo têm se mostrado positivo. Não por outra razão que o Bacen transferiu em agosto R$ 325 bilhões para o Tesouro. Em outras palavras, se razão para a venda das reservas for o seu custo, não haveria razão para vendê-las neste momento.

Outra questão a se considerar é qual seria o nível adequado de reservas para evitar maiores crises no nosso Balanço de Pagamentos. Tomando por base os dados do IFI de julho de 2020 – calculado a partir da métrica utilizada pelo FMI – Fundo Monetário Internacional, denominada ARA (Assessing Reserve Adequacy) – precisaríamos de US$ 210 bilhões, em condições normais de mercado, ou algo em torno de US$ 310 bilhões, em momentos de maior turbulência. Nas atuais circunstâncias, com a incerteza sobre o futuro desta pandemia, nossas finanças públicas em frangalhos e com a instabilidade política que tem tomado conta do Brasil, parece mais razoável trabalharmos mais próximo do limite superior.

Hoje, nossas reservas estão na ordem de US$ 354 bilhões, o que nos daria uma margem de manobra pequena para a utilização da estratégia de venda deste ativo, a não ser que resolvamos abrir mão deste “seguro” importante para o país. E isso é tão mais verdade quando lembramos que há no momento uma demanda por proteção contra desvalorização cambial da ordem de US$ 59 bilhões, representado pelo estoque de contratos de swap cambiais.

Fato é que estamos com um forte desajuste nas contas públicas. Para se ter uma ideia, nos últimos 12 meses a relação Déficit Primário/PIB chegou a 9,13%. Já as relações Dívidas Líquida e Bruta como proporção do PIB atingiram, respectivamente, 61,2% e 90,7% em outubro. Entretanto, mais importante do que reduzir o estoque da dívida bruta neste momento é corrigir a razão do seu crescimento: o constante e crescente déficit primário.

Vale lembrar que o déficit público no nível em que está também exerce pressão sobre as contas externas ao longo do tempo, seja porque pode gerar um excesso de absorção doméstica, refletido no Saldo em Transações Correntes, seja porque eleva a percepção de risco soberano do país, afetando a disposição dos estrangeiros em investir por aqui e, consequentemente, a Conta de Capital.

Em que pese estarmos vivendo um ano atípico, cuja piora substancial das contas públicas e externas não podem ser atribuídas exclusivamente a decisões governamentais, a variação no Balanço de Pagamentos (principalmente em investimento direito e em carteira) neste período dá uma boa ideia do que poderemos enfrentar no futuro, caso não façamos nossa “lição de casa”. A pressão sobre o câmbio ao longo deste ano foi nítida. Não por outra razão, o dólar desvalorizou 35% neste período, com efeitos claros sobre os índices de inflação.

Neste contexto, as ações que realmente importam devem se concentrar principalmente sobre as reformas administrativa e tributária. Já o abatimento da dívida poderia ser pensado a partir da utilização de recursos provenientes de um amplo e irrestrito processo de privatizações. Em paralelo seria importante estimular concessões e empreender um processo efetivo de desburocratização (inclusive na área de comércio internacional) que eleve a produtividade na economia e nossa capacidade de concorrer no mercado internacional. Só assim poderemos ter uma perspectiva mais estável para as contas externas e eventualmente revisar o nível de reserva disponível; mas dentro de um contexto de boa gestão de políticas monetária e cambial.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://economia.uol.com.br/colunas/cleveland-prates/2020/12/02/por-que-vender-reservas-em-dolar-como-estuda-o-governo-nao-e-boa-ideia.htm

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