Por que outras marcas podem desistir de produzir no Brasil após a Ford

Rafaela Borges

Rafaela Borges é jornalista automotiva desde 2003, com passagens por Carsale e Estadão. Escreve sobre o mercado de veículos, supercarros, viagens sobre rodas e tecnologia.

Colunista do UOL

22/01/2021 04h00

Na semana passada, a Ford surpreendeu o mercado ao anunciar o fechamento de todas as suas fábricas no Brasil. A marca vinha perdendo participação nos últimos anos, e em minha análise, na última quarta-feira (13), listei os erros estratégicos que cometeu ao longo dos últimos 20 anos.

Porém, a Ford tinha o necessário, em termos de produtos nacionais, para continuar atuando no mercado brasileiro, com os três carros dos três segmentos que, atualmente, por aqui, são os únicos que importam. No entanto, precisava renovar seus já defasados produtos para sobreviver.

Por causa de fatores que incluem estratégia global da marca, prejuízos que geraram dependência financeira da subsidiária em relação à matriz desde 2013 e panorama do mercado brasileiro, a Ford optou por não atualizar a linha nacional e desistir de produzir carros por aqui. A decisão surpreendente, ao menos neste momento, foi um alerta: será que outras marcas também vão abandonar o Brasil, como fabricantes?

Eu acredito que, após o exemplo da Ford, algumas podem sim tomar o mesmo rumo. A culpa é do governo e das condições macroeconômicas do mercado brasileiro? Sim, mas não apenas. Até porque vocês podem apostar todas as suas fichas que diversas marcas vão continuar produzindo por aqui, com lucratividade, ao menos a curto e médio prazo.

A culpa é também das próprias marcas, e não apenas por causa de estratégias erradas que traçaram, mas também da capacidade de responder às mudanças rápidas pelas quais está passando a indústria no mundo e a adequar essa nova realidade ao Brasil.

Aqui, o objetivo não é apontar dedos. Até porque nenhuma montadora admitiria que tem planos de deixar o Brasil como fabricante – as implicações de um anúncio antes do tempo poderiam levar a muitas perdas. Nesta análise, eu listo alguns fatores de nossa economia e peculiaridades do mercado brasileiro que podem mostrar que, para algumas empresas, produzir veículos no Brasil pode não fazer mais sentido.

Dá para dizer, no entanto, a partir da análise abaixo, que as montadoras com mais condições de ter uma próspera carreira em nosso mercado pelo menos a médio prazo são as Volkswagen, a FCA e a Chevrolet, com a Renault e a Hyundai mostrando também boas armas para continuarem triunfando como fabricantes.

São montadoras que, mesmo com condições adversas do panorama brasileiro, tomaram decisões e fizeram escolhas certas, no momento certo. Não é à toa que vêm dominando o mercado sem ameaças, no caso das três primeiras – ao contrário do que aconteceu com a Ford.

Governo: peculiaridades fiscais e insegurança

Vamos começar pela culpa do próprio Brasil, com suas peculiaridades fiscais e insegurança. Há cerca de dois anos, quando esta coluna ainda não era parte do universo UOL Carros (estreei por aqui no início de 2020, mas a Primeira Classe já existia anteriormente), escrevi uma ampla análise sobre por que as montadoras de luxo tinham grandes chances de fechar suas fábricas no Brasil.

Agora, o que eu escrevi à época se torna realidade: na virada do ano, a Mercedes-Benz anunciou o fechamento de sua fábrica de carros, em Iracemápolis (SP). A Audi parou de fabricar o A3 Sedan no Brasil em dezembro de 2020 – o Q3 já não era montado aqui desde o início do ano passado.

A produção de veículo em São José dos Pinhais (PR) está suspensa e, por ora, sem previsão de retomada (segundo a montadora, parte da decisão vai depender da devolução de créditos de IPI acumulados, e que ainda não foram integralmente devolvidos pelo governo).

A Land Rover mantém a montagem do Discovery Sport em Resende (RJ), mas o Evoque, após mudar de geração, passou a ser importado. A marca não informou se pretende montar mais um modelo por aqui.

A única que se mantém firme, ao menos por enquanto, é a BMW. Em Araquari (SC), monta o Série 3, o X1, o X3 e o X4. A empresa aderiu recentemente ao regime automotivo Rota 2030 e informa que a produção local é responsável por 80% de suas vendas.

Com exceção, talvez, da BMW, as marcas de luxo decidiram abrir fábrica no Brasil por causa do antigo regime automotivo, Inovar-Auto. Por meio dele, era praticamente inviável para as marcas de luxo atuarem no País, que à época tinha um mercado premium em alta, sem produzir ou montar localmente.

Mas o regime não durou nem cinco anos, e suas regras já não valem mais. E, como o Brasil entrou em crise ainda no primeiro governo de Dilma Rousseff, o mercado de luxo logo começou a sentir os efeitos da queda que acometeu toda a indústria. Montar carros aqui, para as marcas premium, deixou de fazer sentido cedo demais.

Essas mudanças rápidas nas regras exemplificadas acima geram insegurança sobre investimentos no Brasil. Para diversos executivos, é difícil trabalhar com um planejamento quando o jogo vira tão rápido. A indústria pede por programas de longo prazo, algo que o Rota 2030, agora, se propõe ser.

Além disso, há o “custo Brasil”, que não é composto apenas pelos altos impostos pagos para produzir carros localmente. Esses impostos são também bastante complexos, o que acaba aumentando os custos, e o valor do automóvel nacional.

Esse panorama reduz a competitividade do produto brasileiro ante países concorrentes, algo que prejudica as exportações. Não depender apenas do mercado local é um pilar importante para a sobrevivência da fabricação nacional.

Para algumas marcas, dependendo do volume, pode ser mais vantajoso importar da Argentina e do México. Este também tem acordo bilateral com o Brasil: os carros produzidos no território mexicano – um grande polo, graças às exportações para os EUA – não pagam imposto de importação.

Brasil está desconectado da estratégia global

A estratégia global de produtos reduz custos de desenvolvimento. O Brasil já teve diversos períodos conectados à linha global das montadoras. Por outro lado, em outros, principalmente aqueles marcados por quedas fortes do mercado, a solução foi desenvolver modelos por aqui, mais baratos – e menos modernos que os dedicados à Europa, que sempre foi a maior referência da indústria local.

Só que o consumidor brasileiro, nos últimos anos, ficou mais exigente em relação à tecnologia e segurança nos carros. Desenvolver por aqui uma simples reestilização sobre base antiga e chamá-la de nova geração já não funciona. Por isso, os custos para desenvolvimento local aumentaram.

Nesse contexto, o Brasil nunca esteve tão desconectado da estratégia global das marcas. Eletrificação é fundamental, seja por meio de modelos híbridos ou elétricos. Essa é a realidade de marcas europeias, americanas e japonesas.

O Brasil está totalmente desconectado da eletrificação e não há nenhuma perspectiva de que esse panorama mude a curto prazo – talvez, nem mesmo a médio prazo. O único híbrido nacional é o Toyota Corolla, e com uma tecnologia já totalmente defasada ante o mundo – o modelo não é do tipo plug-in, recarregável na tomada.

Recentemente, escrevi um texto sobre a razão de a eletrificação não ter perspectiva no País. Por aqui, temos uma peculiaridade, o etanol, alternativa aos derivados do petróleo, por ser renovável e menos poluente.

Em um território de proporções continentais, não se vê nenhum investimento de governos em rede destinada a veículos eletrificados. Nem grandes vantagens tributárias, algo comum em países que apostam na eletrificação.

As marcas de luxo são, mais uma vez, um bom exemplo desse fenômeno. A maioria está investindo em suas próprias redes de recarga gratuita para eletrificados. Sem perspectiva de alcançarem volumes que justifiquem uma nova fase de produção no Brasil, muito menos a possibilidade de desenvolvimento local, essas empresas contam, para sobreviver no País, com suas linhas globais.

E, cada vez mais, essas linhas serão eletrificadas. Não apenas híbridas; elétricas também. Esse fenômeno também chegará às marcas generalistas. Seus produtos globais logo passarão a ter como base a eletrificação. Nesse caso, o Brasil ficará sem espaço na estratégia global de produtos. Os carros terão de ser desenvolvidos localmente, para o mercado interno.

E, se não há demanda eletrificada, não há desenvolvimento eletrificado. Como, então, manter uma estratégia de exportação se os produtos estão desconectados do mundo, especialmente dos mercados fora da América do Sul?

Mercado mudou, e muitas marcas não entenderam

No Brasil, quando o assunto é carro de alto volume, não há espaço para sedãs médios, peruas, monovolumes. Não há espaço para nada que não seja hatches e sedãs compactos e SUVs. As picapes correm por fora.

As médias não têm volumes tão altos, mas ainda assim vendem bem, e são lucrativas. As intermediárias, por ora representadas pela Toro, precisam estar no radar de qualquer marca generalista que tenha planos a partir de médio prazo para o Brasil. E as compactas? A concorrência terá de seguir o exemplo da Fiat Strada, agora cabine-dupla.

Hatches e sedãs compactos, SUVs e picapes. Não tem sentido investir em nenhum outro segmento. Montadoras que ainda apostam em sedãs médios como carros-chefes estão perdendo tempo. Os clientes dessa categoria migraram para os SUVs.

Hoje, as marcas que estão se dando bem são aquelas que fazem sucesso nos segmentos de hatches e sedãs compactos e SUVs. Ter uma picape, seja ela compacta ou média, ajuda bastante e, em alguns casos, é fundamental.

Mais segmentos devem desaparecer

Mas há mais uma mudança por vir, e as marcas que demoraram para chegar ao panorama atual talvez tenham mais uma chance. A tendência é de que o mercado fique cada vez menos acessível, e dedicado a modelos que gerem mais lucratividade.

Hatches compactos só são vantajosos para as finanças das montadoras quando têm volume muito alto e sem vendas focadas demais em frotas e locadoras. O principal exemplo, nesse caso, é o Onix. O Ford Ka, mesmo sendo um dos modelos mais vendidos do Brasil, não gerava lucro para a montadora.

Na Nissan, o volume de vendas do March era baixo. Ao menos por enquanto, a marca deixou o modelo de lado, enquanto foca seus esforços no Kicks e no Versa. Até a Fiat, tradicional no segmento de carros de entrada, não tem trabalhado na renovação desses modelos.

Os esforços da marca, nesse momento, estão voltados para dois novos SUVs, a serem lançados a partir deste ano. Esses movimentos mostram que o foco deve ficar em segmentos de maior valor agregado, com destaque para o de SUVs.

E não apenas os compactos. Os médios também estão se mostrando ótimos negócios, como deixa claro o sucesso do Compass e do Tiguan. Novos modelos estão a caminho, entre eles o Taos.

Com isso, cada vez menos pessoas devem ter condições de ser proprietárias de carros. De olho nisso, diversas montadoras já se adiantaram e estão lançando seus programas de aluguel mensal de carros – algo que vem sendo feito já, com sucesso, por locadoras.

Volkswagen e Fiat já lançaram seus programas, e nesta quarta-feira (20) foi a vez de a Renault anunciar o seu.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/carros/colunas/primeira-classe/2021/01/22/por-que-apos-a-ford-mais-marcas-podem-desistir-de-produzir-no-brasil.htm