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O VAR veio para atrapalhar
Milly Lacombe
Milly Lacombe, 53, é jornalista, roteirista e escritora. Cronista com coluna nas revistas Trip e Tpm, é autora de cinco livros, entre eles o romance O Ano em Que Morri em Nova York. Acredita em Proust, Machado, Eça, Clarice, Baldwin, Lorde e em longos cafés-da-manhã. Como Nelson Rodrigues acha que o sábado é uma ilusão e, como Camus, que o futebol ensina quase tudo sobre a vida.
O Futebol, da forma como eu vejo esse jogo, é uma arte. E, como toda a forma de arte, deveria nos elevar a um lugar de mais significado. Não acho que o VAR colabore para isso, nem para aumentar a beleza do jogo e – aqui é onde começo a apanhar – nem mesmo para que ele seja mais justo. O VAR vai errar e vai acertar. Vai deixar você furioso e vai deixar você em êxtase. Vai acertar por milímetros e errar por interpretação. Vai “beneficiar” seu time na quarta e “prejudicar” seu time no domingo. Porque o VAR não é capaz de dar conta de todas as camadas de subjetividades de um jogo de futebol. E ele veio para atrapalhar.
Mas a turma que defende que o VAR deixa tudo justo não aprecia esse tipo de argumento. Então eu tenho um segundo argumento.
Os norte-americanos nunca gostaram muito desse jogo que o resto do planeta ama e uma das críticas mais comuns é a de que o jogo não tem muitos intervalos (a outra é a de que se trata de um esporte jogado com os pés, o que para eles é uma insanidade já que o natural é jogar jogos de bola com as mãos, muito mais ágeis do que nossos pés).
Uma vez, conversando com um amigo norte-americano que detestava futebol, escutei dele que se o esporte quisesse espaço em TV nos Estados Unidos deveria ter mais oportunidades publicitárias. “Quatro tempos de vinte minutos”, foi o que ele sugeriu. Assim, ele disse, haveria mais apelo para os interesses do mercado.
O VAR entra em campo para beneficiar mais esse tipo de interesse do que a sede por justiça. Quando ele é acionado, o jogo para, o grito de gol é sufocado, a torcida fica em estado de perplexidade até que, dois, três, quatro, cinco minutos depois o gol seja confirmado ou cancelado; o pênalti seja validado ou anulado. Temos aí um novo portal para que patrocinadores façam a sua farra.
Esse não é o jogo pelo qual me apaixonei. É um outro, e posso também me apaixonar por ele, mesmo discordando. Mas é outro.
O que talvez seja mais chato do que o VAR é o debate que traça uma fronteira ética entre os que são a favor e os que são contra o VAR, como se todos os que fossem contra caíssem retumbantemente para o lado antiético. Do mesmo jeito que quando, em 2001, o Brasileirão de pontos corridos foi instituído, quem ousava reclamar dele e pedir a volta do mata-mata era considerada uma alma imoral.
O VAR não vai trazer justiça plena ao jogo. Mas vai, sem dúvida, trabalhar para deixá-lo mais chato, mais monótono, menos emocionante. Vai, como disse meu amigo Allan, dar mais espaço para a juizada aparecer – e quanto mais o juiz aparece, pior para o futebol.
O VAR serve ao Capital e à mercadoria, ao mundo das coisas objetivas, aos que querem tirar a paixão dos debates. E se é bom para o mundo das mercadorias, deixa de ser bom para o mundo das sensações, das emoções, das subjetividades que constituem aquilo que somos e as formas de arte que ajudam a gente a suportar o que, muitas vezes, parece insuportável – que é a noção de que um dia deixaremos de existir. Pode ser a sua; definitivamente não é a minha.
A arte é o único remédio realmente eficaz para que a gente escape das perversidades da existência, da devastação que está contida na consciência da finitude. E, faz um tempo, estão tentando fazer o futebol deixar de ser feitiço, deixar se ser Encanto e magia. Eu acho uma lástima. Como sugeriu o grande Eduardo Galeano: o futebol moderno condena o que é inútil; e é inútil o que não é rentável. Na minha humilde opinião, é uma pena.
Fonte: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2021/02/14/o-var-veio-para-atrapalhar.htm