O que você precisa levar em conta para descobrir se a psicoterapia funciona

Christian Dunker

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)… além de youtuber.

30/10/2020 04h00

Com o grande aumento da demanda por psicoterapias, no contexto da pandemia de covid-19, tornou-se cada vez mais importante o problema da escolha do profissional, da linha ou abordagem, assim como as considerações sobre sua efetividade. Por trás desta questão está em jogo o conceito mesmo de transformação psicológica.

A avaliação das psicoterapias é um grande desafio científico e ético. Desde a década de 1950, quando os primeiros estudos comparativos afirmavam que nenhuma psicoterapia apresentava resultados seguros e constantes, a controvérsia prossegue.

Os problemas começam pelo fato de que pesquisas em saúde, notadamente em medicina, partem de três conceitos para verificar a pertinência de uma estratégia terapêutica: eficiência, eficácia e efetividade.

Associamos a eficiência de uma psicoterapia com certas atitudes e virtudes dos envolvidos : empatia e acolhimento, potência de escuta, regulação de afetos, correlação entre o que se diz e a forma do dizer, articulação da experiência biográfica, precisão na atenção e observação, argúcia na leitura de repetições, insistências ou regularidades, modulação temporal das intervenções, sensibilidade expressiva e representativa, raciocínio diagnóstico e prospectivo, sagacidade na construção de interpretações.

Todas estas habilidades são em certa medida relacionais, ou seja, elas externalizam a capacidade de alguém em se transformar em relação à singularidade do outro que se tem diante de si.

Reconhecer e ser reconhecido, amar e ser amado, agir e reagir, são modelos de transformação simples e intersubjetiva. Quando tais aptidões estão ausentes é como se nosso sofrimento retornasse a algum ponto anterior, como se não saíssemos do lugar: não nos sentimos acolhidos, compreendidos ou inquiridos suficientemente. Mas agora a coisa fica pior porque estamos tentando colocar em palavras e enfrentar a dificuldade.

Podemos ter todas estas habilidades em um péssimo psicoterapeuta. Isso ocorre porque uma psicoterapia não é a aplicação desordenada ou excessivamente ordenada de técnicas, mas uma experiência ética.

Entenda-se por isso não apenas a resposta às perguntas e demandas do paciente, como seria o critério em qualquer serviço, de assistência ou saúde, mas a reformulação das próprias perguntas, segundo a orientação de desejo do paciente.

Muitos que iniciam uma psicoterapia percebem que o que as levou até ali não é o mesmo que as faz ficar, como se o psicoterapeuta criasse as doenças que ele pretende curar. Essa impressão é ainda maior nas práticas psicodinâmicas ou psicanalíticas que se valem da associação livre, ou seja, abertura para que o paciente escolha o tema, a ordem e a maneira de abordar os assuntos, em vez de seguir um roteiro predeterminado.

Portanto, uma psicoterapia tem dois andamentos: reformulação das questões (até o ponto em que elas se dissolvem ou diminuem sua complexidade por serem melhor enunciadas) ou respostas às inquietações em termos de mudanças de comportamento ou abertura para a experiência.

Trocar a pergunta ou tentar respondê-la, ainda que parcial ou equivocamente, exprimem entendimentos diferentes quanto ao conceito-chave de toda psicoterapia: o conceito de transformação. Até que ponto é esta transformação que revira e reverte nossos pedidos e nossos diagnósticos, que esperamos de um bom processo terapêutico?

Se a eficiência estabelece a potência transformativa da relação terapêutica e se a eficácia depende de decisões e metatransformações que fazem da psicoterapia uma experiência dialética, no sentido de que seus erros, enganos e ilusões são integrados ao próprio processo, criando novas descobertas e novos efeitos de verdade, a efetividade é a combinação entre as duas coisas.

Temos aqui a ação conjugada de virtudes atitudinais com decisões e apostas que ultrapassam e rompem a tendência da relação terapêutica a chegar em uma estabilidade.

Se no primeiro caso o terapeuta deve acolher inteiramente, sem juízo ou predileção, o ser de seu paciente, em seus próprios termos e condições, assim como o espectador de uma obra de arte, no segundo caso ele desequilibra, isola conflitos, introduz adversativas e se especializa em dizer ou repetir o que o paciente não quer, ou não pode ouvir.

Como se pode ver, a combinação entre eficácia e eficiência é mais do que desejável, ela é uma condição genérica para que possamos saber se uma psicoterapia está indo para frente ou não.

Muitos perguntarão, neste ponto, o que significa “avançar” ou “progredir” em uma psicoterapia. Sumariamente isso pode ser respondido em três vertentes:

  1. Os sintomas, inibições e angústias estão diminuindo ou se modificando?
  2. Você está se tornando alguém melhor, mais interessante ou que aborda a vida com mais intensidade e satisfação?
  3. O tratamento em si é uma experiência interessante, envolvente e qualitativamente rica (mesmo que eventualmente penosa ou indeterminada)?

Quando examinamos a efetividade de um procedimento médico normalmente recorremos aos métodos do ensaio clínico com duplo-cego ou ao método do padrão ouro.

O padrão ouro ou critério padrão é o exame ou procedimento mais sensível, mais confiável e com mais alto grau de previsibilidade para diagnosticar um processo ou condição.

Como saber qual é o padrão ouro se até hoje não existe nenhum marcador biológico para transtornos mentais? Como saber se os efeitos da psicoterapia não teriam acontecido pelas transformações inerentes ao curso da vida? Novos amores apagam antigas decepções, prosperidades ou falências, saúde se alterna com a doença, alguns dias chove, outros faz sol.

Se pudéssemos imaginar um padrão ouro em psicoterapia, ele provavelmente estaria marcado pelo aumento de preocupação com o mundo. Desde que isso não represente um deslocamento ou uma substituição sintomática do cuidado consigo e da preocupação com os outros significativos, que nos cercam, a orientação para o que concerne a todos, em uma obra humana, costuma ser um critério indicativo do padrão de generalização ético e relacional que se espera de uma psicoterapia.

Psicoterapias são de difícil comparação porque elas ambicionam coisas distintas para diferentes pessoas, mas também porque elas ambicionam coisas distintas em escolas psicoterapêuticas diferentes.

Isso nos leva ao segundo procedimento clássico de comparação: o duplo-cego. Ele consiste em comparar dois grupos de pessoas expondo-se o primeiro a uma variável, por exemplo, um medicamento, e o outro a uma equivalente placebo, sem que ambos os grupos e até mesmo o pesquisador a qual pertence ao grupo de referência e quem faz parte do grupo de controle (que recebe uma pílula semelhante, mas sem agente ativo, em iguais condições ao longo do mesmo tempo) saibam se se trata de medicamento ou placebo.

Como estabelecer grupos de controle que se componham exatamente das mesmas características psicopatológicas? Ou seja, por exemplo, com a mesma depressão, no mesmo estágio, com mesmas comorbidades (associação com outros sintomas) entre pessoas, que seriam entre si, psicologicamente tão semelhantes quanto o organismo de pessoas expostas ao mesmo princípio ativo de uma mesma medicação?

Ademais, como estabelecer procedimentos absolutamente semelhantes, do lado dos psicoterapeutas, de tal maneira que poderíamos, em justa medida, comparar métodos psicoterapêuticos?

A solução seria examinar a autoavaliação dos casos em comparação com eles mesmos ao longo do tempo. Podemos usar escalas, envolvendo qualidade de vida, gravidade de sintomas ou testes projetivos, como o Rorschach, que permitiriam avaliar a transformação da pessoa ao longo do tempo. Mesmo neste caso, combinando-se as estratégias anteriores, os resultados de mais de oitenta anos de pesquisa continuam contraditórios.

As categorias mais óbvias como, por exemplo, tempo de prática, anos de formação, qualidade da formação, tipo de linha teórica, anos de supervisão, mostraram-se progressivamente inconsistentes em prever bons resultados psicoterapêuticos.

Aparentemente a diferença entre dois terapeutas da mesma abordagem clínica pode ser mais importante para o sucesso ou fracasso da psicoterapia do que métodos distintos, comparando perspectivas teóricas diferentes.

Ora, a controvérsia que começou nos anos 1950 desconfiando dos resultados, nos anos 2010, há um amplo consenso de que as psicoterapias são eficientes e eficazes em todas as idades, condições clínicas e situações de vida, apresentando inclusive resultados melhores que os próprios antidepressivos (contrariando a opinião popular).

Ao que tudo indica o problema subjacente a esta discussão remonta a um conceito tão simples de intuir quanto complexo de definir, ou seja: o que significa transformação psicológica?

Todos nós podemos reconhecer —em nós mesmos e nos que nos cercam— oscilações de humor ou de disposição. Isso difere de uma certa permanência de nossos estilos de reação ou de percepção, que poderiam definir nossa personalidade. A personalidade difere ainda de nossas patologias, sintomas e inibições.

Portanto, temos uma combinatória extensa entre estados de ânimo, tipos psicológicos e variedades de sintomas, que se articulam a um montante equivalente do lado daqueles com quem nossos pacientes vivem e convivem.

Acrescentemos agora a este “caldo” todas as condições ou circunstâncias pelas quais assumimos funcionamentos alterados de consciência, seja pela presença de identificações sazonais, nos estados de apaixonamento ou adoecimento, no uso de substâncias que modulam a paisagem mental, nas derivas dos grupos de referência, nas alterações ambientais ou de padrão familiar.

Temos que acrescentar aqui todas as condições estruturais indutoras de sofrimento ou de incremento de vulnerabilidade social: classe, raça, gênero, orientação sexual, etnia. Neste sentido, uma psicoterapia não deveria se contentar em adaptar alguém a uma sociedade repressiva, concorrer para aprofundar a alienação ao trabalho ou conformar aos preconceitos de uma cultura.

Há, portanto uma afinidade estrutural entre transformar-se, transformar aos outros e transformar o mundo. Por isso toda psicoterapia contém não apenas uma visão de ser humano ou de mundo, mas um projeto transformativo, ainda que não o explicite.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2020/10/30/transformacao-e-psicoterapia.htm