O que pode acontecer com você quando o mundo digital mexe com suas crenças

Christian Dunker

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)… além de youtuber.

19/12/2020 04h00

A expansão do Império Romano envolveu supremacia militar e estratégias de conquista e colonização cultural. Por exemplo, pouco antes de uma batalha decisiva ou durante um longo cerco erguia-se um templo e convocava-se os deuses do inimigo a visitá-lo. Desta forma, os deuses bárbaros podiam visitar os deuses romanos sem compromisso, eventualmente mudando de domicílio, ao perceber as vantagens oferecidas.

A astúcia deste procedimento consistia em instalar a dúvida nos combatentes, sugerindo um espírito de hospitalidade com o qual os derrotados seriam acolhidos.

A suspeita de que nossos deuses podem ter nos abandonado ou que eles são mais fracos do que os de nossos adversários pode ser aquele elemento decisivo capaz de mudar o destino do combate.

A estratégia romana era muito eficaz, pois atingia o núcleo da estrutura da crença evitando a solução mais simples que consiste em gritar: “tenham medo de nós porque nossos deuses são mais fortes”.

O medo da derrota pode fazer alguém lutar com mais vigor, daí a eficácia de sussurrar: “será que seus deuses te amam tanto assim?”

Nossas crenças não são apenas sentimentos interiorizados, princípios genéricos ou valores familiares.

A gramática da crença envolve tanto o conteúdo quanto nossa relação com aquilo no qual acreditamos e ainda a prática na qual a crença se exerce.

Podemos perder a batalha porque nossos deuses são mais fracos ou ainda porque nós não acreditamos tanto assim neles ou porque ela não liga adequadamente nossos mitos com nossos ritos.

Além disso, o caso romano ilustra como nossas crenças dependem muito de como interpretamos as crenças alheias, como supomos que o outro acredita naquilo que ele crê.

A vida digital inaugurou uma nova forma de convivência entre deuses e valores, recapitulando a estratégia do Império Romano.

Sem capital definida nem leis claras, há menos de vinte anos nossos templos digitais parecem estar sempre abertos a visitação. Qualquer um pode abrir sua página, blog ou rede social convidando outros a participar de sua própria religião musical ou filosófica, moral ou política, estética ou culinária.

Como na época de Tibério e Adriano ou como o império britânico, vivemos um intenso cosmopolitismo, onde a tolerância pode-se confundir perigosamente com indiferença e irrelevância.

Questionamos o fundamento de nossas crenças não apenas como crise local, parênteses lúdicos ou momento de exceção no qual encontramos outra cultura, outra língua e outra forma de desejar.

A vida digital possui estrutura permanente que combina jogo, teatro, viagem e guerra.

Esta é uma experiência cansativa e arriscada do ponto de vista psíquico. Viver em estado de dúvida não é apenas recreio estético ou glorificação da diversidade, ele mobiliza incertezas reais penosas, sentimentos de inadequação e precariedade, afetos comparativos e potencialmente diminutivos.

A volatilidade de crenças exige coragem para suspender recorrentemente a própria identidade, fôlego para aguentar a descompressão narcísica e disposição para participar de discursos erráticos.

Pascal dizia: “ajoelhe e reze, depois de algum tempo a crença virá por si mesma”. O problema é que este “algum tempo” tornou-se substância escassa ou ausente em nossas crenças digital. Muitas delas são feitas para existir apenas durante aquela breve bolha temporal, sendo excluída depois sem deixar rastro, memória ou consequência logo depois.

Se temos recursos digitais para criar ou desfazer crenças sob encomenda, customizadas para cada ocasião, ainda não inventamos um jeito de sairmos ilesos disso, sem amassar a carroceria de nossa alma. Seria possível descrever algumas reações mais ou menos típicas deste cenário:

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Há os que sofrem quando percebem, comparativamente, como suas crenças são ameaçadas ou confirmadas por crenças alheias.

Muitos recorrem ao que se chama de crença interpassiva como forma de compensar a incerteza.

Na crença interpassiva mantemos ou exageramos um ritual no qual não acreditamos apenas e tão somente porque supomos que o outro, a quem estamos ligados ou com quem antagonizamos supostamente acredita. Por exemplo, pais que encenam rituais natalinos apenas e tão somente porque acham benéfico que seus filhos acreditem nisso.

Na crença digital isso funciona como uma espécie de efeito de radicalização, decorrente do fato de que toda conversa acaba superestimando o tamanho do público real que a acompanha.

Disso decorre uma espécie de agressivização da conversa, porque tenho que lidar ao mesmo tempo com meu interlocutor e com o sujeito que supostamente acredita no que ele diz. Assim temos que lidar, ao mesmo tempo, com a batalha real e com os deuses que estão a assisti-la, com argumentos e ideias misturados, ao modo da pós-verdade, com as identidades sensíveis de quem as expõe.

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A segunda forma de crença digital foca no jogo da prova de fé e da concorrência dos deuses para livrar-se da angústia da incerteza. É o caso daqueles movidos pelo ódio que parecem insensíveis a argumentos e provas, a dados e autoridades.

Aqui o problema não é o efeito plateia nem a retórica da conversão, mas a autocertificação e o viés de confirmação.

Grito e ataco o outro para recuperar a certeza perdida nos próprios deuses. Caminho perigoso porque é preciso aumentar cada vez mais a dose da “reza” para obter o mesmo efeito de “milagre”.

Aqui estão os consumidores potenciais de fake news, que apreciam ouvir o que já sabem apenas para purificar e estabilizar a própria crença. Fazem o sucesso de muitos comentaristas e reportagens que apenas repetem ideias do senso comum, mas que faturam com o efeito de pertencimento e pacificação que isso produz.

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Caso oposto é o dos que invejam ou desdenham convicções alheias apenas porque elas aparecem como convicções muito delineadas. Comportam-se como se estivessem libertos deste estágio primitivo no qual dependemos da força dos deuses e das nossas provas de fé. Sua satisfação está na denúncia dos falsos ídolos e das ilusões alheias, como se só eles percebessem que a vida digital é teatro.

Aqui a crença não se pratica pela defesa ou confirmação de teses, mas pela frase de efeito, ambígua ou surpreendente, como que a dizer: “vocês não perceberam ainda que este jogo é um teatro sem consequência”.

São aqueles que querem discutir se o homem chegou realmente à Lua ou se a Terra é plana, não só como forma de conquistar atenção e causar polêmica, o que os tornará menos solitários, mas pelo sabor de parasitar crenças alheias, apresentando-se na posição de quem não tem posição.

A suposição aqui é de, ao se apresentar como um templo vazio ou refratário aos deuses alheios, eles incitam a cobiça por serem conquistados.

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A quarta gramática da crença digital está ligada ao fato de que por mais que os cliques, comentários ou compartilhamentos tenham uma dimensão narcísica, uma função apaziguadora ou uma relevância baseada em ilusões, eles valem dinheiro e votos.

Operando com perfis falsos e articuladores de grafos* de consumo e dos influenciadores digitais envolve a ocupação deste novo tipo de espaço público.

Não é porque ele seja patrocinado e organizado por empresas privadas que seu interesse deixe de ser público. As fronteiras do novo império romano são múltiplas, internas e externas. Elas envolvem coisas como blockchains, algoritmos secretos, além de uma série de processos que ninguém sabe muito bem como funcionam, mas que operam sobredeterminando nossas crenças.

É possível que a batalha final aqui se dê entre os que acreditam na autonomia e na autoridade do saber contra aqueles que se especializam nos fundamentos do poder dentro do universo digital.

Até lá não sabemos muito bem se somos escravos ou senhores de nossas crenças digitais.

* A teoria dos grafos ou de grafos é um ramo da matemática que estuda as relações entre os objetos de um determinado conjunto. Para tal são empregadas estruturas chamadas de grafos, G (V, E), onde V é um conjunto não vazio de objetos denominados vértices (ou nós) e E (do inglês edges – arestas) é um subconjunto de pares não ordenados de V. Mais informações aqui.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2020/12/19/crencas-digital.htm