O mundo ficou pior sem os dois

Juca Kfouri

29/11/2020 01h49

POR EDUARDO BORGES*

“O futebol é a coisa mais importante dentre as menos importantes” teria dito o genial treinador Arrigo Sacchi. Essa frase é verdadeira no atacado, mas pode ser questionada no varejo. O futebol, como toda atividade que dialoga com a emoção humana, tem a capacidade de expressar um nível de sentimento que pode colocá-lo, em termos de impacto social, em um patamar um pouco acima da identificada na frase de Sacchi. 

​O futebol não é uma coisa amorfa e tampouco existe por si só. Ele é composto por indivíduos,  que constroem e resignificam esse esporte desde sua criação. Nascido na aristocrática Inglaterra rompeu a barreira da estratificação social e geográfica ao ocupar o planeta de forma incontestável. É a maior criação humana. Para o mundo ocidental, talvez só a Igreja Católica se compare em dimensão histórica. No continente africano, na Escócia e nos  rincões do Piauí, joga-se e ama-se o futebol. Deixou de ser somente esporte e transformou-se, por alguns pés mágicos, em arte, seria a oitava arte?

​Para alguns chega a ser visto como religião, bastante progressista, diga-se de passagem, pois tem um Deus negro, e seu olimpo é composto por pernas tortas, pernas curtas, compridas, canhotas, destras, brancas, amarelas, somente pernas, que juntas formam um mosaico em movimento a nos embalar, desde a mais tenra idade, nos permitindo chegar aos 90 anos com o espírito de menino. 

​Mas dentre todas essas coisas maravilhosas que compõem o futebol, destaca-seos artistas que furam a bolha do mundo paralelo do gramado e flertam com a vida real. Indivíduos que impactam a vida real e nos mostram o quanto a frase de Sacchi é limitada para explicar a grandeza do futebol. Alguns se mostraram grandes somente dentro do campo. Outros se mostraram fora do campo, maiores do que foram no campo. Mas tem aqueles que conseguiram a proeza de se mostrarem enormes nos dois universos. 

De maneira geral, os que atingem essa condição têm uma trajetória muito parecida. Relato rapidamente a trajetória de um deles que pode ser visto como o modelo a que me refiro. De família não pertencente à camada privilegiada da sociedade, nasceu e cresceu conhecendo as agruras da vida social vulnerável. Iniciou a carreira em um clube de menor expressão, a porta de entrada de todos os futuros gênios. Brilhou na seleção de seu país, que encantou o mundo em uma Copa. Fez a alegria de uma das torcidas mais apaixonas de seu país ao jogar em um de seus clubes mais tradicionais. Foi levado à aristocrática Europa, mais especificamente a Itália, e se fez grande no quintal alheio. Porém, como todo Deus/Humano sucumbiu ao canto da sereia do vício oferecido pela vida glamorosa proporcionada pela fama. Só fez mal a si próprio, mas compensou fazendo um bem extraordinário a todos nós. Mas isso, em nenhum momento, lhe furtou a vocação de sujeito de sua própria história. Ele não se restringiu à bolha. Filho da sofrida América Latina, tinha no sofrimento de seu povo a motivação para não se submeter aos poderosos do campo e da vida. Falou ao mundo suas angustias e se transformou no porta-voz dos vulneráveis. Ele já não está entre nós, mas sua marca dentro de campo nos deixa imensa saudade, porém, que ele fez fora do campo vai, certamente, nos deixar órfãos. Sim, estou me referindo a Diego Maradona, mas pode substituir por Sócrates Brasileiro. O mundo ficou pior habitado sem os dois.

*Eduardo José Santos Borges é professor-adjunto de História da Europa Moderna na Universidade do Estado da Bahia.

Fonte: https://blogdojuca.uol.com.br/2020/11/o-mundo-ficou-pior-sem-os-dois/