Neon Genesis Evangelion: anime revela a nossa passagem para o mundo adulto

Christian Dunker

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)… além de youtuber.

01/01/2021 04h00

ATENÇÃO: este texto pode conter spoilers

“Neon Genesis Evangelion” ou “O Evangelho de uma Nova Gênesis” é um anime composto por 26 episódios criado e produzido pelos estúdios Gainax e Tatsunoko e dirigido por Hideaki Anno que foi ao ar entre 1995 e 1996 pela TV japonesa. Para os brasileiros fãs de animes, ele representa uma espécie de arquiexperiência de tudo o que veio depois: “Naruto”, “Pokémon”, “Yu-Gi-Oh”, “Fullmetal Alchemist” e todo um conjunto de narrativas extensas e fábulas de alto impacto que caracterizaram culturalmente a primeira geração de nativos digitais.

Esta parece ter sido uma experiência formativa, no sentido mais forte do termo, quando pensamos no nível de dificuldade que ela propõe para ser interpretada.

“Evangelion” introduz, com a simplicidade de um traço caligráfico, a complexidade representada pelo nosso tempo marcado pela interpenetração de códigos, linguagens e narrativas.”Shrek” seria um exemplo ocidental correlato de uma história que se desenvolve em vários planos: para crianças e para adultos, para mulheres e para homens, para americanos e para o resto do mundo, ou seja, uma história com destinatários estratificados.

Isso propõe uma espécie de desafio automático composto pela quantidade de níveis hermenêuticos que alguém consegue empilhar para ler o que está sendo proposto.

Por exemplo, logo na abertura vemos projetado a imagem dos sefirots, pedra fundamental da Cabala judaica, composta por 22 caminhos ou emanações da inteligência divina, separada entre mundo do pensamento, da alma e da corporeidade, segundo uma certa leitura do Zohar, livro sagrado do século XII.

Depois temos ideogramas sagrados do xintoísmo e, na sequência, vemos a futura major Katsuragi trajando um crucifixo, dirigindo violentamente para resgatar Shinji Ikari, o protagonista de 14 anos, que está esperando desamparado em uma das esquinas de Tokyo-3, uma vez que as duas outras capitais do Japão foram destruídas por impactos anteriores.

Shinji é uma criança especial. Ele dirige uma das unidades EVA, robôs gigantes capazes de enfrentar a cada vez um dos seis Anjos, enviados para destruir a cada vez e novamente a cidade. O pai de Shinji comanda a organização Nerv de defesa, com mãos de ferro, mas ao mesmo tempo usou o DNA da mãe de Shinji, fundindo-o com resto de Adão (o primeiro anjo) para criar Rei, outra criança piloto. Rei é melancólica e compete com Asuka (outra piloto nascida na Alemanha) pela atenção de Shinji, acabando catatônica.

Deu para entender?

Pois então, assistir a “Evangelion” é como ler “Ulisses” de Homero, no século VIII aC .

Mas por um outro outro lado é a história da resistência irlandesa contra o jugo britânico que a teria feito a primeira colônia, à custa de fome e violência.

Mas por um outro outro outro lado é a história de como uma língua pode canibalizar todas as outras tornando-se assim a expressão universal da experiência humana, descrita a partir de uma prosaica família irlandesa.

Na primeira camada narrativa, “Evangelion” é sobre um grupo de alunos de uma mesma escola. Aqui Shinji é um tímido rapaz com personalidade “porco-espinho”, ou seja, não tolera ficar sozinho, mas também reage mal à proximidade de seus colegas: Rei, Asuka, Toji, Kaworu e Mari.

Apesar de desde sempre estudar nesta escola, agora ele sente que mão há nenhum lugar que lhe seja familiar nesta nova cidade. Trata-se da adolescência, onde até as aulas de violoncelo dão em nada. A professora bonitona, o valentão, o sabichão, assim como as mais típicas intrigas namoradescas se desenvolvem trivialmente.

Neste andaime, quando ele desiste de lutar, recriminam como covarde e ele se reapresenta para uma recuperação masoquista: “Eu que mereço levar um soco: sou fraco e um covarde”. Novas crianças são descobertas como habilitadas para pilotar as EVAs, mas curiosamente todas pertencem à mesma classe escolar de Shinji.

Na segunda camada, Shinji se acopla a uma unidade biomecânica e pilota um gigante de ferro contra seres alienígenas, chamados de Anjos, provavelmente uma alusão ao fato de que os demônios são também chamados de anjos caídos (como Lúcifer, Belzebu e Asmodeu).

Tais anjos teriam sido despertados pelo impacto de um meteoro na Antártida que teria degelado uma caverna subterrânea e alterado o ecossistema do planeta. Lá se originam os Anjos que destruíram Tóquio duas vezes, deixando a cidade em constante alerta contra novos ataques.

O pai Gendo Ikari aparece sempre como uma figura sinistra, no alto, com olhos de farol exigindo que o filho cumpra sua missão. Shinji, qual Hamlet e Arjuna, se inquieta diante do dilema de agir ou não agir.

A procura por razões faz com que ele recue e desista da sua missão (ou seria lição de casa mesmo) ocasionando conflitos e consequências imprevisíveis.

Aqui estamos no nível mítico da política japonesa, com suas eras de destruição atômica, monstros compostos pelo excesso de poluição, mas também vulcões marinhos e seus seres fantásticos. Temos então, nesta segunda camada de sentido, uma fusão de mitologias do ocidente e do oriente.

A terceira camada é freudiana. Nela encontramos o problema recorrente da sincronização entre a mente da criança e o corpo do robô. Aqui encontramos um conjunto de indicadores e leituras da torre de comando que apontam para a emergência da sexualidade e da relacionalidade como um problema em alta tensão.

As mensagens são ambíguas, mas bem humoradas, como, por exemplo: “preciso sincronizar com EVA antes que libido ultrapasse o patamar Borderline”. No episódio 20, chamado Fase Oral, depois de sonhar com três mulheres perguntando o que nosso protagonista quer, a instalação da cápsula indica que “a catexia do sujeito está normal”, mas o “limite do ego está preso em um loop”.

A descrição é precisa e traduz muito bem como muitos adolescentes sentem seu corpo como um anexo, em luta contra seres alienígenas, dotado de baixas terríveis de energias e sobrecargas. Diante deste corpo sentem-se impostores, inadequados, incapazes e naturalmente envergonhados por ainda não dominar completamente os controles da cápsula.

Quando Kaworu Nagisa, a quinta criança, toma banho, toca a mão de Shinji e quer dormir com ele, os controles assumem um alto “nível de toxidade mental e o Dogma Central é aberto”. Nosso herói está perdido na névoa, estudado como uma cobaia: dependente simbiótico, ansiedade de separação, pensamento compulsivo dotado de “alma falsa, coração falso e corpo falso”. É o inferno de se sentir uma criança indesejada e um brinquedo quebrado.

No quarto círculo narrativo, encontramos as especulações metafísicas. O próprio pai (ou general), que trabalha na Nerv e na Gehirn, deve prestar contas à Seele, organização secreta dentro da organização secreta que procura instrumentalizar as almas humanas. Vale dizer que Seele em alemão quer dizer alma, Gehirn é cérebro e Nerv sugere nervos.

Aqui a decisão de lutar ou fugir assume proporções heroicas, mas também profundamente especulativas. Nesta fase, Joyce e Freud dão lugar a Samuel Beckett.

A trama se paralisa em instantes infinitos onde as formas de representação passam por metamorfoses gráficas e expressivas: surgem fotografias, desenhos realistas, mas também impressionistas, expressionistas e geometrismos. Aqui ronda a pergunta sobre o pai: “Por que ele me chamou se não precisa de mim?”, “Por que ele não está aqui para ver eu pilotando Eva?”

O tema do suicídio, que perpassa a meditação de Shinji e a tristeza de Rei dá luz ao problema mais prático que é como fazer a alma se deixar aprisionar por uma destas criaturas mecânicas, sem causar apoptose (suicídio celular). O ódio ao pai torna-se agora parte da busca pela verdade.

Descobre-se que o segundo impacto foi contemporâneo à descoberta dos manuscritos do mar Morto e que estamos em uma nova civilização criada por Lilith [1]. Surge o momento existencialista da trama: “a esperança está escrita nas linhas do desespero”, “o último anjo se foi, mas porque eu o matei?”, o desespero nos faz querer voltar ao nada. Afinal, quando “todas as almas se tornarão uma” de modo a “preencher o vazio de cada um”.

O projeto de instrumentalização humana no qual o pai de Shinji trabalhava não deixa de nos lembrar o grande delírio do presidente Daniel Schreber, este grande psicótico estudado por Freud, que tinha a convicção de que deus estava se infiltrando em seu corpo, por meio de raios solares, com o objetivo de transformá-lo em uma mulher, para depois copular com ele, dando origem a uma nova raça.

A pergunta sobre o desejo e o amor vai se radicalizando. A busca por sentido se arrefecendo: “podemos começar a amar sem motivo, mas sempre terminamos por causa de um”. A inquietação em torno da essência do eu vai diminuindo na medida que se descobre o gosto por “entregar-se ao puro e simples prazer” e o reconhecimento de que “somos substâncias frágeis” que precisamos tomar cuidado consigo.

Ao final, Shinji parece acordar de seu sonho, ou de seu pesadelo, com a legenda que pontua o encerramento da epopeia: “foi seu coração que confundiu verdade com realidade”.

“Neon Genesis Evangelion” é uma descrição perfeita da transição que nos introduz ao mundo adulto, se é que ele existe mesmo.

Os Evangelhos contam a mesma história, sobre a vida de Cristo, mas cada qual o faz de um ponto de vista diferente: Lucas fala aos romanos, Matheus aos judeus, Marcos aos bizantinos e João aos gregos. Todos eles convergiriam para um ponto comum, que eventualmente não pode ser representado de modo uniforme.

É assim também com as narrativas escolar, mítica, psicológica e metafísica da saga de Sinji. Elas podem se revelar una, mas não idêntica, uma vez que nosso coração tende a confundir verdade com realidade.

Para uma geração que estaria entrando em um multiculturalismo jamais experimentado antes, a saga funcionou como uma espécie de prólogo antropológico ao novo mundo. Mas a gênese deste novo mundo não foi assim tão sinóptica. Nela o coração, mas também o ódio, confundiu verdade e realidade.

Faltou gente assistindo este Evangelion e sobrou gente brincando de robô indestrutível.

REFERÊNCIA

[1] Personagem bíblica que teria antecedido Eva, referida à mitologia da Mesopotâmia.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2021/01/01/neon-evangelium.htm