Licitação de ônibus no DF chama a atenção para fragilidades dos editais

Kelly Fernandes

Arquiteta e urbanista pela FAU-Mackenzie e especialista em Economia Urbana e Gestão Pública pela PUC/SP. Profissionalmente atua como pesquisadora em mobilidade urbana e é envolvida com a defesa dos direitos de quem anda a pé, pedala e usa transporte público.

Colunista do UOL

30/10/2020 04h00

A Constituição Federal de 1988 determina que cabe aos municípios “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial” (art. 30. Inciso V) – obrigação atribuída também ao Distrito Federal.

No Brasil, a prestação indireta – que trata da concessão da operação às empresas privadas – é a mais comum. Após a constatação de irregularidades na concessão vigente, o DF anunciou no dia 22 de outubro que fará a concessão do sistema de transporte coletivo por meio de edital de licitação (procedimento administrativo utilizado pelo poder público para fazer compras e contratações).

De acordo com o anúncio feito pelo Diário Oficial, será realizada, no dia 03 de dezembro, uma audiência pública para colher contribuições da população a respeito do termo de referência, documento que registra informações sobre os objetos da concessão como a quantidade de ônibus, o número de linhas, o prazo do contrato, a remuneração das empresas, etc.

Todas essas definições são decisivas para a qualidade de vida de quem usa o transporte coletivo diariamente que, trocando em miúdos, podem representar menos tempo de espera no ponto ônibus, mais linhas de ônibus em circulação, a redução da tarifa e veículos mais confortáveis e menos poluentes.

Ao que dá a entender, além da audiência, a população do DF pode contribuir com o processo licitatório entrando em contato via e-mail com a Secretaria de Transportes e Mobilidade (Semob). Apesar das oportunidades de participação estarem enquadradas na Lei Federal Nº8.666/1993, que disciplina processos licitatórios, as alternativas de participação social previstas para a população estão aquém do ideal.

Vide o guia “Boas práticas de gestão dos ônibus na visão do usuário” elaborado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) disponível para download gratuito.

O guia orienta que o processo de consulta pública, iniciado após publicação do edital de licitação, aconteça durante o período de 90 dias e seja amplamente divulgado. Indicando a necessidade de processos descentralizados e a realização de mais de uma audiência pública, que devem acontecer em diversas regiões da cidade. Medida essencial, sobretudo no caso do DF, visto que sua área urbana é muito mais do que o Plano Piloto, possuindo outras 32 Regiões Administrativas (RA).

Outro ponto importante destacado em reportagem do Correio Braziliense do último dia 27 é o prazo de 14 anos da concessão, renovável por igual período. Em entrevista ao jornal, o subsecretário de Infraestrutura e Planejamento da Semob, José Soares Paiva, utilizou como base de referência para justificar o período de concessão, o tempo médio de substituição de ônibus por modelos mais novos.

Trata-se de uma referência simples para algo bastante complexo, pois, ao evitar que as mesmas empresas permaneçam na operação do transporte coletivo por muito tempo, os prazos de licitação são elementos importantes para ampliar a competitividade dos editais.

Isso porque prazos de concessão longos demais podem comprometer a incorporação de novas tecnologias ou alterações eventuais nos padrões de operação do sistema de ônibus. Construindo uma barreira para novos investimentos, tais como o aumento do número de ônibus em circulação ou a melhoria da tecnologia veicular, que costumam ser barrados por cláusulas de equilíbrio econômico e financeiro, em prejuízo das pessoas que usam o sistema.

O contexto atual ensina muito sobre isso, pois a pandemia do novo coronavírus fez despencar a principal (por vezes única) fonte de financiamento do sistema de transporte público coletivo, ao mesmo tempo que demandou o aumento dos custos com limpeza e higienização.

Tais desequilíbrios fizeram com que as empresas fossem resistentes à manutenção das condições operacionais e à incorporação de novos procedimentos, evidenciando a fragilidade do poder público frente à rigidez, à extensão e à ausência de critérios para distribuir riscos nos contratos desse tipo de serviço.

Na mesma entrevista, Paiva sinalizou a intenção de reduzir o valor do subsídio pago pelo DF, que aumentou em R$ 200 milhões após a crise sanitária. Valor esse que é utilizado para cobrir a diferença entre o que foi arrecadado em tarifas pagas pelas pessoas e a remuneração à concessionária estipulada no contrato vigente, que sofre reajustes anuais segundo a variação de índices inflacionários, repassados para a tarifa.

E, apesar de o sistema de ônibus do Distrito Federal ser um dos poucos que conta com a participação do poder público no financiamento, a população precisa pagar ao menos R$ 2,70 por passagem, porque nas linhas com percurso mais longo o custo da passagem é maior, chegando a R$ 5,50 – mesmo valor cobrado no metrô.

Ademais, essa relação crescente entre distância e tarifa precisa ser corrigida pelo novo edital, visto que corrobora com distorções e injustiças geradas durante o desenvolvimento urbano do DF, historicamente reforçadas pelo padrão desigual de distribuição das linhas e horários de circulação dos ônibus, que prejudicam quem mora mais longe do Plano Piloto de modo que impossibilita acessos igualitários à cidade.

O novo edital também pode trazer um respiro para a população. Literalmente, já que tem potencial de contribuir para reduzir emissões de gases poluentes e nocivos à saúde humana adotando tecnologias veiculares mais adequadas e/ou realizando mudanças na matriz energética, por exemplo trocando o diesel por energia elétrica, a fim de zerar as emissões de escapamento veicular.

Também é possível implantar um centro de controle operacional (CCO) com uso de tecnologias de monitoramento em tempo real, melhorando a capacidade de fiscalização e controle dos serviços, que pode ser ainda mais eficiente com a contribuição da sociedade civil.

Dito isso, é necessário promover um processo de consulta pública ao novo edital de licitação em diálogo com a sociedade, levando em conta as RA’s e com atenção aos desafios que esperam o setor de transporte coletivo nos próximos anos: queda de receita tarifária, empobrecimento da população e sustentabilidade ambiental. Três pontos que demandam que o novo edital esteja muito além do mero cumprimento de um processo administrativo, portanto, ao lado de valores de justiça social, econômica e ambiental.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/carros/colunas/kelly-fernandes/2020/10/30/licitacao-de-onibus-no-df-chama-a-atencao-para-fragilidades-dos-editais.htm