Inter precisa entender o tamanho da mudança que é ter Ramirez

Rodrigo Coutinho

Rodrigo Coutinho é jornalista e analista de desempenho. Acredita que é possível abordar o futebol de forma aprofundada e com linguagem acessível a todos.

Colunista do UOL

03/03/2021 04h00

O Internacional está prestes a vivenciar uma profunda reformulação no estilo de jogo que apresentou nas últimas temporadas. O espanhol Miguel Ángel Ramirez, contratado pelo Colorado para comandar a equipe, tem conceitos de futebol muito diferentes de qualquer outro técnico que passou pelo clube nos últimos anos.

Ramirez tem apenas 36 anos e é natural das Ilhas Canárias. Começou a trabalhar com futebol com menos de 20 anos, treinando as categorias de base do Las Palmas, clube de sua cidade natal. Sete temporadas depois, teve uma breve passagem por clubes gregos antes de voltar ao Las Palmas. Em 2012 foi contratado para auxiliar no desenvolvimento do futebol no Catar e ficou lá seis anos, até ser contratado pelo Independiente del Valle.

O movimento incomum num primeiro momento, a ida de um espanhol, ainda jovem, a um clube sem tanta tradição no Equador, faz todo o sentido quando buscamos entender a proposta da contratação. O time da cidade de Salgolquí possui um raro projeto de futebol na América do Sul. Pensa o esporte de maneira bem específica ao desenvolver um modelo de jogo comum a todas as categorias e privilegia a formação de equipes com atletas revelados na base.

Miguel Ángel Ramirez primeiramente assumiu a equipe sub-18 para ajudar na implementação do jogo de posição e foi alçado aos profissionais em maio de 2019. Ganhou uma Copa Sul-Americana no mesmo ano, foi vice da Recopa para o Flamengo em ótimos duelos contra o time de Jorge Jesus, e viu sua equipe aplicar uma goleada de 5 x 0 no mesmo Rubro-Negro na última Libertadores. Foi 3º colocado no último Campeonato Equatoriano e acabou eliminado nos pênaltis nas oitavas de final.

O novo técnico do Inter passa muito longe de alguns chavões levados em consideração para a escolha de outros treinadores no Brasil. Não tem ”peso para o vestiário”, não tem ”prataria”, não fará conchavos para relações complacentes de setores da imprensa, e possui pouquíssima experiência nos profissionais. Mas tem conteúdo! Ele se preparou para ser treinador. Possui ideias nítidas na montagem de uma equipe. O que pesará mais?

Pegando um recorte mais recente, o Colorado teve Abel Braga, Eduardo Coudet e Odair Hellmann como treinadores. Hellmann e Abel se assemelham em muitas coisas nas ”propostas base” de organização. Coudet é diferente deles. Mas Ramirez representa uma ruptura grande, que só o tempo fará a proposta ser executada de maneira altamente competitiva.

A começar pela organização ofensiva, Ramirez certamente implementará o jogo de posição no clube gaúcho. É uma referência muito forte em sua formação profissional. Foi contratado justamente para desenvolver esse conceito no Catar e no Equador. Não será diferente no Brasil. Treinadores colocam em prática aquilo que acreditam e dominam. É uma espécie de chancela, marca pessoal, não é vaidade, é filosofia de trabalho.

Nele, os atletas precisam obedecer a uma ocupação de espaços mais definida no campo de jogo. Não há tanta liberdade de movimentação por outros setores. A grosso modo, o jogador não vai até a bola, a bola é que vai até ele. A proposta é ter equilíbrio no posicionamento do time no gramado, gerando automaticamente as linhas de passe e a circulação da posse de maneira natural. O atleta se mexe, interage com os companheiros, mas dentro de zonas definidas do campo.

A construção é quase sempre feita com aproximação e troca de passes curtos desde os pés do goleiro. Só há passes longos em situações muito específicas, de preferência se houver espaço nas costas da defesa rival, ou na possibilidade de inversão para os pontas do lado contrário, sempre bem abertos. Tirando isso, as equipes de Ramirez costumam insistir na saída curta, mesmo se o adversário adiantar o bloco de marcação. Por isso preza por defensores, volantes e goleiros que saibam sair bem sob pressão.

Adianta bastante o time no campo de ataque e por isso precisa desenvolver uma boa transição defensiva para impedir contra-ataques rivais, o que nem sempre acontecia no Del Valle. O que quase sempre ocorria era a criação de muitas chances de gol e o domínio do jogo a partir da posse de bola. Certamente o Inter será um time muito ofensivo, mas com certa exposição na defesa.

Os escanteios são um caso à parte com Ramirez. No time equatoriano, ele defendia a área com poucos jogadores em comparação a outras equipes. Geralmente deixava três atletas no ”balanço ofensivo” prontos para serem acionados em caso de um corte da defesa. Desta forma, gerava dúvidas nos adversários, que acabavam optando por não levar tanta gente à área ofensiva, receosos com os contra-ataques.

Esse exemplo da bola parada defensiva é sintomático para entender a cabeça do técnico espanhol. É obcecado pela bola, pelo ataque. Ao mesmo tempo que pode encantar oferecendo algo que está em falta no futebol brasileiro, abre-se uma janela para a vulnerabilidade defensiva, o que somado ao histórico de pouca bagagem pode ser fatal na relação com a ”esquizofrênica” crítica esportiva brasileira.

Se o Inter de fato está ciente do que contratou, cabe ao clube dar tempo e respaldo, buscando entender os processos de formação do time, a adaptação de jogadores ao novo modelo, oferecendo material humano condizente com a proposta, cobrando com sabedoria e fechado em suas convicções, se é que elas existem.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/rodrigo-coutinho/2021/03/03/inter-precisa-entender-o-tamanho-da-mudanca-que-e-ter-ramirez.htm