Grupo mantém experimento com amigos imaginários e abala noção de “sanidade”

Álvaro Machado Dias

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica “Frontiers in Neuroscience”, membro da Behavioral Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: [email protected]

09/02/2021 04h00

O GameStop, que fundos como o Melvin Capital apostavam que iriam cair. A brincadeira custou mais de US$ 3 bi ao Melvin, em menos de uma semana.

O movimento dos investidores não profissionais é apenas um caso especial na longa lista de fenômenos sociais de cair o queixo gerados no Reddit e no 4chan, outra plataforma de fóruns, que sobreviveu à queda do hype do formato.

Fóruns são ambientes para quem joga para iniciados, o que é basicamente o oposto do que se observa em plataformas como o Facebook, dos tempos em que era considerado cool. Eles são o túmulo da usabilidade, das timelines e de tudo aquilo que distrai da conversa.

O poder dos fóruns lembra o das paredes vazadas de um centro acadêmico, onde qualquer um pode entrar, mas não sem ser notado. Estas paredes dão segurança aos participantes para expressar mais livremente aquilo que consideram ser “as suas verdades”, em contraste com as páginas pessoais, supostamente desenhadas para tanto.

O clima de desinibição é reforçado pelo uso de pseudônimos, estimulando o reforço coletivo das idiossincrasias, compartilhadas sob o manto das opiniões relacionadas ao tema que levou todo mundo a se encontrar em primeiro lugar.

Isto torna os fóruns menos atraentes para a grande maioria, que enxerga nas plataformas sociais uma maneira de ver e de ser visto, mas também lhes traz uma outra forma de sustentabilidade, que as redes sociais típicas de hoje jamais terão.

Eu aposto sem medo que o Reddit vai estar de pé quando o Facebook desligar seu último servidor.

Uma das coisas que me faz pensar isso é o fato de que o experimento mental mais radical de toda a internet —e talvez de todo o mundo— fazer parte do dia a dia de uma comunidade do Reddit, contar com um número imenso de adeptos e não parar de crescer.

Cerca de trinta mil adultos trocam experiência sobre como criar e manter amigos imaginários, no subreddit (fórum específico) Tulpas. Os relatos sobre o convívio com estes amigos imaginários colocam noções consagradas em choque e ajudam a entender fenômenos que de fora parecem profundamente misteriosos, como a chamada voz da consciência. Vamos nessa.

O que é ser um morcego

Para podermos prosseguir com força total é preciso que você feche os olhos e reflita por uns dez segundos sobre como você está se sentindo agora. Faça.

Agora, feche os olhos de novo e chame seu próprio nome, silenciosamente, dentro da sua cabeça, umas três ou quatro vezes, espaçadamente.

Percebe como a primeira experiência parece muito mais pessoal que a segunda, a despeito do fato de que é esta em que seu nome aparece?

A razão para isso é que nós estamos acostumados a sermos chamados por outras pessoas, de modo que quando escutamos nosso nome sendo chamado mentalmente, ativamos reminiscências das vozes de outras pessoas, sobretudo nossos pais e cônjuges.

Este experimento que inventei mostra que o grau de pessoalidade das coisas que nos passam à mente se transforma de maneira quase instantânea.

Ele também mostra uma outra coisa, igualmente profunda: por mais que a experiência de pessoalidade varie de situação em situação, a sensação de que estas ações interiores são controladas pela nossa mente é inequívoca. Isto se chama agenciamento.

Focar aquilo que estamos sentindo ou a voz sem decibéis do pensamento é passar essas coisas por uma espécie de decodificador do código neural. Este decodificador tem um nome: consciência. Sob ela, tudo possui um misterioso ar de familiaridade, tal como se mesmo aquilo que ainda não pensamos nem sentimos já existissem, numa espécie de limbo neurológico das realidades cifradas.

Para um desavisado pode parecer que estamos conhecendo as coisas de que tomamos consciência pela primeira vez, mas isto não é verdade. O trabalho de decifrá-las exige conhecimento prévio da fórmula que as revela à consciência, a qual só é gerada quando temos clareza do assunto em pauta.

Esta relação em duas esferas, do código neurológico e da consciência, faz com que nos relacionemos com nossos sentimentos e pensamentos futuros tal como se os redescobríssemos —como se cada coisa que acontecesse dentro da nossa mente fosse precedida pela afirmação do seu duplo pré-consciente e meramente neurológico.

Assim é o agenciamento: um senso de etérea familiaridade com aquilo que surge à mente, que as pessoas têm em níveis diversos de intensidade, em função do conteúdo e de sua personalidade.

Essa familiaridade é a assinatura exclusiva de todas as coisas, na mente de cada um de nós. Como Thomas Nagel certa vez escreveu, você nunca poderá saber como é ser um morcego. Você nunca poderá saber como é ser ninguém mais, ele quis dizer.

A familiaridade traz unicidade, enquanto a antiga ideia de loucura nega-a, aludindo à ideia de que algo ou alguém infiltrou-se no cérebro, rasgando a constituição da vida mental unitária. Deste ponto em diante, a pessoa deixa de ser quem antes fora —diria a sabedoria popular e também a falta dela.

Exorcismos, degredos, espancamentos e, claro, confisco das posses; muitos foram os meios pelos quais tentou-se extrair estes intrusos do cérebro das pessoas, ao longo da história.

Mas eis que o século 20 chegou, Eugen Bleuler definiu essa condição como esquizofrenia (o que quer dizer mente cindida) e, lentamente, alguns tratamentos melhorzinhos para o restabelecimento da unicidade foram surgindo, conforme foi ficando claro que tratar o paciente de maneira desumana é desumano.

Cerca de um século de estudos sobre a esquizofrenia e outras condições que cindem a mente serviram para plantar bem fundo a ideia de que seres autônomos que moram na mente são sinônimo de doença.

Pois é exatamente isso que esse fórum do Reddit vem colocando em cheque, ao menos em parte: síndrome de Asperger (espectro autístico), enquanto a penetração na população geral é de cerca de 2%.

As taxas de depressão e ansiedade também são maiores do que na população geral, mas a prevalência no fórum é de pessoas sem nenhum quadro neurológico ou psiquiátrico.

Tulpamancia

A prática de criar amigos imaginários, que o Reddit ajudou a disseminar, chama-se tulpamancia. Tulpa quer dizer emanação em tibetano.

Sua introdução no ocidente aconteceu nos 1920, quando a exploradora belga Alexandra David-Néel publicou um livro narrando suas experiências num mosteiro tibetano, entre as quais encontram-se relatos minuciosos sobre a criação de tulpas, através de exercícios de visualização sistemáticos.

Alexandra conta que ela mesma deu origem a um tulpa, que alguns monges podiam enxergar. Com o tempo, este tornou-se agressivo e teve que ser suprimido.

A interação com o invisível que Alexandra descreve vai na contramão do saber estabelecido pela psicologia e psiquiatria: pessoas sãs —e ainda mais, monges tibetanos— podem conviver com seres imaginários dotados de agenciamento e personalidade, por anos.

“Uma vez que o tulpa é imbuído de vitalidade suficiente para se tornar real, ele tende a se libertar do controle daquele que o criou” (David-Néel, 1929, p. 190).

Uma maneira fácil de reagir a isso é dizer que os monges podem fazê-lo justamente porque são menos apegados ao ego. Em contraste, as cisões mentais produzidas no contexto da vida produtivista e individual tenderiam a se manifestar como dissolução e loucura. Esta visão está errada e só se mantém porque a maior parte dos adultos que cultiva este tipo de relação com o invisível sente-se inibida para falar sobre isso.

Uma pesquisa publicada na prestigiosa Frontiers in Neuroscience (2019 ) concluiu que cerca de 7,5% dos adultos têm companhias imaginárias, de um tipo ou de outro. Isso significa que para cada 8 pessoas que têm este tipo de relação, apenas 1 tem esquizofrenia. Parece muito? Pode ter certeza de que a taxa está fortemente subestimada.

O que está acontecendo no Reddit indica uma crescente oposição aos estereótipos ligados à prática.

Parece haver uma espécie de libertação em jogo, que segue os passos da afirmação sexual não binária das últimas décadas, com algumas diferenças: as pessoas não estão numa jornada de aceitação —tulpas não surgem à revelia das intenções, como na esquizofrenia— elas estão em uma busca afetiva.

A principal razão pela qual gente como a gente busca desenvolver amigos imaginários é para aplacar a solidão, como ressaltou Samuel Veissiere, que conduziu uma pesquisa no tema. A libertação, portanto, é contra as amarras do certo e do errado na busca por uma vida íntima mais plena.

Este traço do movimento pode ser encontrado na sua gênese, que não poderia ser mais bizarra: o movimento bronie, de adultos que cultuam as aventuras de Meu Pequeno Pônei, o qual se tornou febre no começo da década passada. Sério.

De acordo com um documentário sobre os bronies (2012), a febre tem a ver com o fato de que os pôneis cultivam a amizade e outros bons sentimentos. Numa visão alternativa, o “bromance” celebrado surge de fantasias homoeróticas infantis.

Os primeiros tulpas do Reddit eram pôneis desenvolvidos a partir dos apontamentos de Alexandra David-Néel. O universo puxado para o psicodélico do desenho animado levou os foristas a propor que os tulpas deveriam ser agraciados com seus próprios universos imaginários, o que não faz parte da prática tibetana.

O Reddit também inovou com a prática de se trocar de lugar com o tulpa, tal como se a consciência humana fosse deslocada para um ponto fora do corpo, enquanto este abrisse seu cockpit para um ser imaginário. De acordo com os foristas, apenas quem pratica muito consegue ter essa experiência.

Origem dos amigos imaginários e tulpas

Uma em cada duas crianças tem ou terá um amigo imaginário. Eles são mais comuns em meninas do que meninos, na maior parte das vezes acompanham crianças entre 4 e 7 anos, ainda que sejam comuns até os 12 anos.

Tulpas são mais comuns entre homens, na faixa dos 18-30 anos. Porém há exceções como se vê neste tópico do Reddit. Resumindo a tendência geral, Alex escreve: “comecei meu tulpa aos 14, mas evoluí de maneira muito lenta porque estava ocupado com coisas da escola e o fato de estar na adolescência”. Na data da postagem, ele tinha 18 anos e cultivava uma tulpa chamada Kitsukrou.

O tópico sobre idade dos tulpamancers sugere que a descontinuidade entre a prática infantil e adulta não seja tão grande assim. Isto reforça a tese de que suas razões para existir estejam conectadas.

A hipótese mais popular para a existência de amigos imaginários na infância é funcional: ao brincar com o amigo imaginário a criança estaria se preparando para lidar com coisas que não entende, especialmente na esfera social. Isto explicaria o fato de que o amigo imaginário geralmente sabe e pode mais do que a criança.

Esta hipótese estende-se à vida adulta, no caso de quem tem Asperger e usa seu tulpa para aprimorar habilidades sociocognitivas, o que acontece pelo simples ato de dialogar com ele.

Uma segunda hipótese é que os amigos imaginários serviriam para reduzir a ansiedade e a solidão infantil. Isso explicaria porque são mais comuns entre primogênitos e filhos únicos.

A hipótese também se aplica à vida adulta, na medida em que “a maior parte dos tulpamancers cita a solidão e a ansiedade social como incentivos para adotar a prática” (Veissière, S., 2016, p.6).

As duas explicações para o surgimento de amigos imaginários possuem aspectos corretos e complementares. Elas não explicam o que os torna possíveis em primeiro lugar.

A minha tese é de que eles são consequência do encontro de duas modalidades recém-adquiridas de pensamento.

Bebês e crianças pequenas vivem como se o mundo girasse em torno deles. Tal como pequenos pássaros ou mamíferos, esgoelam-se para chamar a atenção e garantir que os adultos não lhes deixem padecer. Trata-se de estratégia de sobrevivência, anterior a todas as outras.

A partir dos 4 anos, algo muito particular da nossa espécie acontece: genes expressos em áreas do cérebro como o córtex frontal medial e o giro do cíngulo fazem as crianças abrirem os olhos para o fato de que os outros têm suas agendas de desejos e intenções. Num estirão, as crianças passam a se relacionar com as outras pessoas levando em conta aquilo que acreditam que lhes passe à mente.

A incorporação dessa noção de intencionalidade alheia, de que não apenas nos relacionamos com o corpo físico das outras pessoas, mas sim com as mentes delas, é uma das mudanças de ponto de vista mais radicais pelas quais passamos na vida.

Os outros sentem, almejam e se frustram com coisas que só podem ser entendidas ao se assumir que pensam de maneira ligeiramente diferente da nossa.

Mais ainda, as pessoas enxergam nossos desejos a partir de seus próprios estados mentais, sempre permeados por suas percepções e interesses. A sensação lembra um pouco a de Truman descobrindo que vive numa espécie de realidade televisiva, distribuída entre as milhares de pessoas que lhe assistem e julgam diariamente, sem que jamais tivesse se dado conta.

Esta percepção é essencial para habilitar o amigo imaginário a servir de conselheiro moral, entre outros papéis que exigem profundidade interior.

Mais ou menos nessa fase, a criança percebe a existência de algo que irá lhe acompanhar por toda a vida: sua voz interior. Esta percepção se chama metacognição: a habilidade de sentir e pensar sobre o pensamento, tal como se fosse algo extrínseco a nós mesmos.

Esta percepção —que não deixa de ser uma forma bem peculiar de atenção— é essencial para circunscrever representações mentais específicas, evitando que se confundam com o fluxo geral do pensar e do sentir. Sem ela, é impossível manter a constância das representações mentais por muito tempo.

Entre perplexa e fascinada com as vozes que escuta em sua mente, a criança aplica-lhes o esquema de atribuição intencional, o que lhes dá autonomia, tal como se pertencessem a alguém mais.

Ao fundir duas novas aquisições mentais, a criança elimina as barreiras para o surgimento dos seus amigos imaginários, o que vai acontecendo conforme desenvolve narrativas biográficas para os mesmos, inspirada nas historinhas que ouviu.

É na construção destas narrativas que surgem as oportunidades para satisfazer desejos e funções, como a de se contrapor à solidão e a de servir de apoio para a interpretação das coisas que não entende direito, o que as teorias dominantes caracterizam muito bem.

Crianças encontram amigos imaginários tal como adultos forjam tulpas. Ambos o fazem pela atribuição de intencionalidade a representações mentais destacadas do resto, através de processos metacognitivos.

A única diferença é que isso se dá de maneira mais espontânea na infância e mais deliberada na vida adulta. Mas, pode apostar, a diferença é muito mais de grau do que de substância.

Os ingredientes mentais usados na fórmula que criei possuem base evolucionária, retroagindo às relações entre nossos ancestrais do paleolítico (antes do surgimento da agricultura) e o ambiente ao redor. Explico.

O processo civilizatório consiste numa grande epopeia de redução de riscos e danos. O progresso técnico da sociedade é como um grande pacote de benefícios, que reduz riscos e favorece a longevidade e que é dividido entre todos de maneira nada equânime.

Em contraste, os grupos nômades do paleolítico (idade geológica: pleistoceno) viviam relações bem mais igualitárias e diretas com o perigo.

Barulhos na mata costumam ser provocados pelo vento; porém, quando vêm de um predador e este é tratado com desdém, o desenrolar tende a ser fatal.

Assumir que o desconhecido pode ser um agente intencional poderoso é adaptativo, ainda que pouco tranquilizante. Gera ansiedade, mas aumenta a extensão da vida, além de servir de mola propulsora para o esforço civilizatório, que ironicamente torna a vigilância excessiva disfuncional.

Amigos imaginários não são frutos direto da evolução, mas a inclinação a plantar olhos mal-intencionados em todas as partes, certamente é.

Percebe como seu cachorro toma barulhos aleatórios por ameaças? É disso que estou falando, só que aplicado ao Homo sapiens, com seus mais de cem bilhões de neurônios e sua capacidade de atribuir estados mentais a tudo e a todos.

A mesma coisa se aplica à metacognição, ou atenção internalizada, a qual é essencial para organizar os pensamentos de maneira eficiente, tendo muito provavelmente evoluído junto com a linguagem.

Tulpa, religião e ocultismo

Alguns dos principais estudiosos da origem das religiões apontam que o animismo —uma de suas primeiras manifestações— surgiu da atribuição de intencionalidade ao mundo natural para reforçar comportamentos vigilância.

Meu ponto de vista é de que exista uma etapa cognitiva neste processo, que ainda não é bem compreendida pela ciência e que envolve quebras autoinduzidas da unidade mental do eu. Estas quebras abririam espaço para acomodar o senso de autonomia das entidades espirituais, que é essencial para a fé mais profunda e dogmática —afinal, não tem porque questionar algo que se manifesta para você com total autonomia intencional.

Ninguém duvida que as experiências espirituais descritas por caçadores-coletores de grupos isolados sejam pessoalmente verdadeiras. No entanto, tendemos a colocar uma espécie de barreira imaginária entre estas e as experiências com o invisível que permeiam a nossa sociedade, tal como se fossem algo típico da mente primitiva.

Na minha visão, a lição mais profunda que 30.000 praticantes de tulpamancia oferecem é de que a evocação sistemática de entidades invisíveis é suficiente para dar-lhes independência, dentro do cérebro das pessoas de qualquer sociedade, inclusive da nossa. As dinâmicas do imaginário parecem não terem se alterado tanto desde o fim da era do gelo (pleistoceno).

A continuidade que existe entre crianças com amigos imaginários e adultos com tulpas, existe entre o budismo tibetano, o imaginário animista, o espiritismo ou o catolicismo, na medida em que preconizam relações com entidades invisíveis, sob a premissa de que elas têm independência intencional em relação ao fiel.

Não é preciso discutir se Deus, santos ou espíritos existem de verdade para saber que as pessoas estão falando a verdade quando dizem que os sentem, escutam ou veem. Trinta mil pessoas provam que isso pode acontecer, independentemente de credos ou doutrinas.

Basta cultivar sistematicamente a ideia de que existem, contextualizando-a numa narrativa consistente para que deem as caras. Esta é a coisa mais profunda que tenho para compartilhar sobre a origem do pensamento religioso.

As religiões abraâmicas possuem livros que exercem esta finalidade minuciosamente, sendo por isso fundamentais para o desenvolvimento da fé.

No primeiro capítulo do Gênesis lê-se que a “fala divina” cria a humanidade à imagem e semelhança de Deus. No capítulo seguinte, essa criação ganha representação humana, ao passo que uma rica cosmologia é agregada. O capítulo dá contornos a um dos tulpas mais recorrentes: a cobra. E assim a narrativa segue.

Eu não estranharia se algum algoritmo sem noção tomasse o velho testamento como guia para a prática da tulpamancia. Todos os ingredientes para o enriquecimento narrativo estão lá.

Tudo isso é apenas contextual, frente ao aspecto-chave do processo de criação de tulpas: eles não se manifestam gradativamente, conforme o fiel investe em simulações da sua independência; pelo contrário, os relatos são unânimes em dizer que o praticamente deve investir na construção de sua narrativa originária e ir falando com o tulpa, sem apelar ao faz de conta de que está sendo correspondido. Se persistir neste modo sincero e dedicado por tempo suficiente, acabará por ser contatado.

Transposto ao contexto religioso do ocidente, o que os praticantes da tulpamancia mostram é que a sensação de que Deus ou um espírito comunicou-se espontaneamente com a pessoa não é algo inesperado ou sobrenatural —uma prova ontológica da existência do invisível— mas um reflexo da maneira peculiar como a mente humana exsuda seus habitantes imaginários.

Não se trata de um milagre, mas da maneira como a mente funciona.

Relação com o invisível

Tulpas são mais do que mera curiosidade, aberração ou apropriação indébita de práticas tibetanas por foristas digitais em busca de novidade.

Os 30.000 praticantes de tulpamancia do Reddit mostram que conceitos convencionais de sanidade e loucura estão errados, enquanto nos dão provas explícitas de que a experiência religiosa mais profunda das religiões abraâmicas —a de que Deus ou alguma entidade divina apareceu para o fiel, com total independência intencional do mesmo— pode ser construída no cérebro de pessoas mentalmente saudáveis, pelo mero exercício.

Para mim, é seguramente um dos mais importantes experimentos sociais deste novo milênio. Ele não fala nada sobre a existência de Deus, anjos ou espíritos —afinal, sempre pode ser que algumas companhias imaginárias não sejam fruto da mente.

O que a tulpamancia faz é mostrar que não é necessário se apelar para este tipo de coisa para explicar o fato de que tanta gente garante ter relações com o mundo espiritual, sendo muitas delas sensoriais.

Diversos praticantes de tulpamancia do Reddit reportam que seu amigo imaginário é capaz de lhes revelar coisas que não sabem ou não se lembram.

Uma hipótese para explicar isso é que o agenciamento central do eu restringe o processo de conversão do código neural em consciência. Em contraste, a atribuição de autonomia pode usar rotas neurológicas distintas para a construção da consciência intencional, por sua vez levando a mudanças no padrão de resgate de memórias (hipocampo) e mesmo de raciocínio.

Isto é coerente à percepção de que os tulpas possuem seu próprio estilo e personalidade.

Outro argumento a favor desta hipótese é que muitos artistas e outros profissionais dizem que entram em estado de flow, no qual sentem as coisas de maneira um pouco diversa e conseguem lembrar ou dizer coisas que seriam difíceis fora dele.

Ainda sabemos muito pouco sobre a formação e cultivo de relações com o invisível. Longe de querer esgotar o assunto, meu objetivo aqui foi o de meramente introduzir algumas ideias que ando desenvolvendo sobre o tema e lembrá-los: a internet é de fato onde acontecem os fenômenos mais interessantes dos dias atuais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/alvaro-machado-dias/2021/02/09/tulpas-o-fenomeno-mais-louco-de-toda-a-internet.htm