Gambito da Rainha: hit da Netflix capta âmago de quem perde o jogo da vida

Christian Dunker

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)… além de youtuber.

25/12/2020 04h00

“O Gambito da Rainha” (The Queens Gambit, 2020), minissérie da Netflix dirigida por Scott Frank e Allan Scott tornou-se rapidamente um sucesso de público. A trama é envolvente, as músicas contêm altos teores da aurora do rock e a atriz principal, Anya Taylor-Joy, como Beth Harmon, desperta uma curiosa simpatia. Contudo, o roteiro mantém uma série de pontas soltas e parece mal acabado. A protagonista parece não se desenvolver em relação à sua própria lógica de conflitos, os personagens secundários não se entendem e os antagonistas são caricatos como os vilões soviéticos dos anos 1970.

“O Gambito da Rainha” se presta a exemplificar algo que discutimos há muito tempo quando se trata da relação entre cinema e psicanálise, ou seja, há filmes que são ruins do ponto de vista da sua realização, propósito ou montagem, filmes que do ponto de vista estético apenas replicam o pior da indústria cultural ou da estereotipia social, mas mesmo assim possuem um tremendo potencial de transformação subjetivo.

Tendo a pensar que esta não é a regra, ou seja, que há filmes que nos tocam profundamente justamente porque sua linguagem fílmica, sua forma ou sua narrativa introduzem perspectivas novas e inusitadas de ver o mundo e a nós mesmos.

Usando a expressão que Freud colheu de Leonardo da Vinci, são filmes que atuam pela via de porre, ou seja, eles nos enriquecem com mais conteúdo, com mais forma, com mais sabedoria ou emoção. Depois de assisti-los sentimos que algo mudou em nós mesmos, e que nunca mais seremos os mesmos e que a experiência do cinema, ela mesma, mudou a partir de então.

“O Gambito da Rainha” produz um outro tipo de transformação, ou seja, ele não põe, mas tira algo de nós, por isso ele se inclui entre os filmes que agem pela via de levare, segundo a estética de Leonardo.

Ele consegue fazer isso usando uma narrativa de base que sugere exatamente o contrário, ou seja, o progresso contínuo de uma jovem menina órfã, Beth Harmon, que diante de uma vida devastada pela perda da mãe e pelos maus tratos no orfanato, só tem o xadrez como consolo e só tem a competição como propósito.

Isso parece ter captado o âmago de uma época onde os chamados perdedores na competição do jogo da vida, os nerds e hikikomores recolhem-se humildemente em um mundo paralelo composto por batalhas infinitas de Overwatch, entre uma sessão e outra de Death Note.

Posto desta forma o elenco se ajusta. Quase todos foram atores mirins que agora chegaram à idade da vida real: Thomas Brodie-Sangster (“Game of Thrones”, “Maze Runner”), Harry Melling (“Harry Potter”) e Bill Camp (“12 Anos de Escravidão”, “Coringa”) sem falar na própria Anya Taylor-Joy, sobrevivente de “Fragmentado” e “Vidro”.

Ou seja, esta memória difusa ou indireta, trazida pela história dos atores para dentro destes personagens atua sobre nós lembrando que também somos heróis sobreviventes de uma epopeia infantil, que agora desmanchou no ar, como tudo o mais que parecia sólido.

Vamos lembrar que o livro de Walter Tevis no qual se baseia a série é de 1983, seis anos antes da queda do muro de Berlim e ainda no período da Guerra Fria. Esta época no jogo da vida parecia mais simples: 64 casas, preto no branco, com suas regras inexoráveis e simples. Que vença o melhor e o mais inteligente!

Contudo, há uma grande diferença, neste mundo Beth Harmon nunca existiu. A personagem parece ter sido construída em cima do único herói americano capaz de enfrentar os gigantes russo do tabuleiro: Bobby Fischer.

No antológico confronto em Reykjavik (Islândia) contra Boris Spassky, Fischer, como Harmon, modifica sua maneira habitual de jogar, caracteristicamente agressiva.

Assim como Fischer, Harmon vence as competições locais e derrota figuras consagradas do xadrez de sua época, quebrando a hegemonia russa iniciada com a vitória de Arlekhine sobre o cubano José Raúl Capablanca, em 1921. Mas ao contrário do que se esperava para seu papel de Capitão América, suas declarações eram completamente inconvenientes diante do esperado:

“Os Estados Unidos são baseados em mentiras. São baseados em roubo (…) A história do país é basicamente o quê? Ganhar algo do nada. Certo? Tomar. Matar. Eles invadiram o país; roubaram as terras dos indígenas. Mataram quase todos eles. Trouxeram escravos para trabalhar os campos, construir o país. Certo? (…) Agora por que o homem branco não veio à América de maneira civilizada, dizendo nós somos perseguidos na Europa, não temos liberdade de religião?“

Ou seja, ali onde se espera o discurso soberano do vencedor encontramos a declaração cabal de que que esta sucessão de vitórias é feita no fundo de derrotas.

Beth Harmon não existiu, mas devia ter existindo. Ela representa todas a mulheres que um dia tiveram que vencer, pela primeira vez em mundos, jogos e regras adversas. Essa teria sido a história justa de uma mulher abrindo caminho em um jogo até então masculino, apesar da excepcional jogadora húngara Judith Polgár. A principal habilidade desta heroína é justamente transformar perdas em ganhos. Dois anos depois do confronto na Islândia ela podia ter escrito o poema, Arte de Perder, que Elizabeth Bishop publicou em 1976:

A arte da perda é fácil de estudar:
a perda, a tantas coisas, é latente
que perdê-las nem chega a ser azar.

Perde algo a cada dia. Deixa estar:
percam-se a chave, o tempo inutilmente.
A arte da perda é fácil de abarcar.

Perde-se mais e melhor. Nome ou lugar,
destino que talvez tinhas em mente
para a viagem. Nem isto é mesmo azar. [1]

A trajetória de Beth Harmon é um conjunto de perdas e traumas: perdeu a mãe, perdeu a amiga, perdeu a chance de ter um novo lar, perdeu a oportunidade de um grande amor, perdeu grandes momentos de descoberta sexual, perdeu o querido zelador Shaibel que a introduziu ao xadrez.

Ela parecia estar sempre em outro lugar, jogando xadrez dopada em seu próprio quarto, estranhando seu corpo e seus sentimentos. Ela pode parecer destemida, desde fora, mas parece mais alguém incapaz de medir o perigo, objeto e subjetivo das coisas. Ela não se oprime, nem sofre com o passado, apenas separa-se dele, às vezes usando o álcool e o xadrez para isso.

Alguém diria tratar-se de um tipo dissociativo, esquizoide ou esquizotípico, hoje certamente um caso de Transtorno do Espectro Autístico.

Mas é na medida que suas perdas se conectam com as de sua mãe adotiva, se interligam com a decepção que ela causa em seus pretendentes e se articulam com as derrotas no xadrez, ou seja, é na medida que a perda se generaliza como um princípio de relação e socialização, quando ela reencontra sua amiga, quando ela percebe-se representando o time de xadrez que ela mesma derrotou que ela aparece cada vez mais como sujeito.

Um ótimo marcador desta transformação são os vestidos, cada vez mais elegantes e cada vez mais apropriados por um corpo que ainda não cabe neles.

Sua impulsividade encobre uma maneira de funcionar que vemos em tantos pacientes que lutam com lutos suspensos e melancolias intermitentes, ou seja, antecipar a perda para imaginar que a controla.

De todas as partidas reais reproduzidas na série (com exceção da última) nunca vemos partidas de jogadores conservadores e equilibrados como Mikhail Botvinnik e Anatoly Karpov, mas apenas de jogadores considerados sanguinários como Samuel Reshevsky, Rashid Nezhmetdinov, Leonid Stein, Paul Morphy, Raúl Capablanca e Bobby Fischer. Jogadores que adoram o caos no tabuleiro e sacrificam torres e bispos como se tivessem oito peças de cada e não apenas duas.

Aliás, para quem não conhece o jogo, o gambito é simplesmente uma abertura que contém uma oferta de sacrifício. Pode ser o gambito do rei quando oferece-se o peão do rei para ser comido, ou o da dama, mas nos dois casos a ideia é entregar algo para o adversário. Perder primeiro para depois contra-atacar.

Por isso, o gambito da dama é considerada uma das aberturas mais complexas de jogar e que conduz a jogos muito fechados, que tendem a se resolver por diferenças mínimas, de um peão ou dois, justamente o equivalente daquele inicialmente perdido.

A lição deixada pelo seu pai e pelo seu substituto é clara, e ela a transformou da melhor maneira possível, por isso, tornou-se nossa heroína perfeita em uma época que parece só ter ouvidos para as vitórias garbosas e exuberantes:

– Agora você abandona! [2]

REFERÊNCIAS

[1] Tradução de Nelson Ascher

[2] Agradeço a Carlos Mendes Rosa e ao grupo de Palmas da UFT pelas ideias que formaram esta coluna.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2020/12/25/gambito-da-rainha.htm