FNM: a história dos caminhões da primeira fábrica de veículos brasileira

Iniciada em 1949, a linha de pesados usou tecnologia Alfa Romeo em modelos variados de seis cilindros a diesel

Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação

Que fabricante deu início à produção de veículos motorizados no Brasil? Nada de DKW-Vemag, nem de Volkswagen com Isetta: a primazia coube à Fábrica Nacional de Motores (FNM), fabricante de caminhões, em 1949.

A história da fábrica dos conhecidos “fenemês” — pronúncia coloquial da sigla FNM — começou sete anos antes, em 1942. Criada pelo governo militar, a empresa tinha a finalidade de construir motores de aviões com tecnologia da Wright norte-americana para a Segunda Guerra Mundial. Quando o primeiro motor saiu da unidade do distrito de Xerém, em Duque de Caxias, RJ, em 1946, o confronto já estava encerrado.

O FNM D-7300, feito sob licença da Isotta-Fraschini, foi o primeiro caminhão nacional

Veio então a indefinição sobre o que fazer da fábrica — do Jeep da Willys-Overland e caminhões Mack a tratores e geladeiras, muito foi estudado. A solução vinha em 1949: um acordo com a Isotta-Fraschini italiana para fabricação de seus caminhões sob licença. Embora a empresa europeia estivesse em falência, o FNM D-7300, variação do D-80 da Isotta, entrou para a história como o primeiro caminhão produzido no Brasil.

O “Fenemê” era diferente do rebanho de pesados que circulava pelo País, em sua maior parte com caminhões a gasolina importados dos Estados Unidos. Com capacidade de sete toneladas de carga, o modelo usava motor a diesel de seis cilindros e 7,3 litros (daí o número 7300) com injeção direta e potência de 100 cv, transmissão de cinco marchas e freios hidráulicos. A cabine recuada deixava o capô saliente, o para-brisa era bipartido e, no interior, os instrumentos vinham no centro do painel.

Foram feitos cerca de 200 caminhões até que a falência da Isotta inviabilizasse o negócio. Os governos brasileiro e italiano então encontraram outra empresa para dar seguimento à FNM: a Alfa Romeo, com a qual ela firmava acordo em julho de 1950. De início os italianos forneceram os chassis e cabines de caminhões e chassis de ônibus, até que começasse a nacionalização três anos mais tarde.

A série D-9500 vinha com motor Alfa Romeo mais potente e cabine avançada, que podia receber diferentes desenhos conforme o fornecedor, além do padrão da marca

O primeiro “Fenemê” da nova fase, o D-9500, era derivado do Alfa 800 italiano e bem diferente do D-7300. A cabine agora estava sobre o eixo dianteiro, com o duplo para-brisa bem à frente, e as portas eram abertas para trás. Ele tinha capacidade para 8,1 toneladas (14 com reboque), motor a diesel de 9,5 litros com injeção direta e 130 cv, freios pneumáticos e caixa com oito marchas à frente e duas à ré.

Embora fabricasse a cabine dos caminhões, a FNM permitia e incentivava que outras empresas fizessem cabines com estilo próprio para aplicação pela fábrica, instaladas fora ou em reposição

O ronco encorpado e peculiar de seu motor a diesel era cada vez mais ouvido nas precárias estradas brasileiras, onde seus predicados de resistência e confiabilidade foram apreciados. Aos poucos eram incluídos componentes nacionais como pneus, rodas, radiador e eixos. O chassi brasileiro começava a ser feito em 1955, quando o índice de nacionalização alcançava 54% e a produção superava 2.400 unidades. No ano seguinte, a frota de caminhões da marca pelo País já era maior que a de Mercedes-Benz e Volvo, então importados. Aparecia o modelo de cabine que tornaria a FNM mais conhecida Brasil afora, com espaço para dois leitos em beliche — boa solução em tempos de viagens que podiam levar semanas ou meses.

O modelo D-11000 estreava em 1957 com o mesmo desenho e motor mais potente, um seis-cilindros a diesel de 11 litros e 150 cv com bloco de alumínio e comando de válvulas no cabeçote. Com o mote “Montanha comigo é festa!”, a publicidade sugeria desempenho incomum. O caminhão oferecia maior capacidade de carga (9,1 toneladas ou 18 com reboque) e três opções de distância entre eixos. O conteúdo local já superava 82%. Em 1958 quase 4 mil deles saíram de Duque de Caxias, sucesso que não impediu um problema técnico.

O D-11000 ganhava motor de 150 cv e maior capacidade; a cabine da Brasinca aparecia em sua publicidade, como nas duas peças verticais em preto e branco

A porosidade do bloco permitia o vazamento de líquido de arrefecimento para o cárter, o que causava contaminação do óleo — origem do apelido “barriga d’água” — e podia fundir o motor. A fábrica substituiu os motores afetados, o que restaurou a confiança em sua robustez. Eles foram muito empregados na construção da nova capital Brasília, inaugurada em 1960, e na abertura de estradas como a Belém-Brasília e a Transamazônica.

Uma peculiaridade da FNM era que, embora fabricasse a cabine dos caminhões, permitia e incentivava que outras empresas fizessem cabines com estilo próprio. Assim, a Brasinca de São Caetano do Sul (SP) e a Metro do Rio de Janeiro (RJ) forneciam cabines para aplicação pela própria fábrica, enquanto outras podiam ser instaladas fora ou mesmo em caso de reposição, como Caio, Carretti, Drulla, Fiedler, Gabardo, Inca, Irmãos Amalcabúrio, Kabi, Rasera e Santa Ifigênia.

Além da aparência, elas se distinguiam pela construção: as paranaenses Drulla, Gabardo e Rasera usavam estrutura de madeira, à qual eram aparafusados os painéis de chapa de aço. A abertura das portas também variava — a Metro seguia o padrão comum hoje, articulado na frente, e as demais mantinham as portas articuladas atrás. Algumas usavam pintura em dois tons, o clássico “saia e blusa”, comum em automóveis da época, e na cabine Inca os para-brisas podiam bascular para maior ventilação. Os modelos da Brasinca e da Metro eram até mostrados na publicidade da marca.

Os modelos 1967 recebiam novo painel e motor de 175 cv; a série “V” oferecia opções variadas de entre-eixos, como o V-6, o mais curto deles

No mesmo ano — 1960 — em que a FNM começava a fabricar o automóvel 2000 JK sob licença da Alfa Romeo, os caminhões recebiam mudanças de desenho das lanternas dianteiras. A usinagem de motores era iniciada dois anos depois. Em 1964 aparecia a nova série V (de variante ou versão) com V-6 para chassi curto, V-5 para médio, V-4 para longo e V-2 para superlongo, dotada de opção de direção assistida hidráulica e novos bancos e volante.

Apesar do aumento da nacionalização para 97%, os caminhões da FNM estavam defasados em tecnologia diante de concorrentes como Mercedes-Benz e Scania-Vabis, o que se refletiu na queda de produção para pouco acima de 1.000 veículos por ano. Uma cabine modernizada com desenho brasileiro, chamada de Futurama e com estreia prevista para 1968, não se concretizou. Os modelos 1967 vinham apenas com novo painel, motor de 175 cv com torque de 67 m.kgf, terceiro eixo de fábrica e novo emblema da marca.

A FNM viveu um período conturbado com o governo militar, em que parte das autoridades defendia sua recuperação e parte preferia vender a estatal. A maior fábrica de caminhões pesados do Brasil era colocada à venda em 1967. Marcas como Citroën e Renault anunciaram interesse em cooperação para fazer automóveis, mas a própria Alfa Romeo é que acabou assumindo as operações no ano seguinte — para surpresa geral, pois os italianos não mais fabricavam caminhões desde 1964.

Os modelos V-10, V-17, V-12 e V-13 (na ordem de fotos) ampliaram a linha FNM com opções como chassi extralongo, direção assistida e dois eixos direcionais na frente

De início o “Fenemê” seguiu inalterado, apenas com novas versões: a V-12, com terceiro eixo e capacidade para 15,2 toneladas, e a V-13, com chassi curto para cavalo mecânico ou basculante. A direção assistida agora vinha de série em toda a linha e a velocidade máxima subia de 90 para 100 km/h. O V-10 com dois eixos e chassi extralongo aparecia em seguida. Em 1972 era lançado o V-17, com dois eixos dianteiros direcionais, solução comum na Europa e inédita no Brasil. Era um meio de obter capacidade de 27 toneladas sem exceder o limite de peso por eixo autorizado pela “Lei da Balança”, que passava a fiscalizar o peso transportado nas rodovias.

A última novidade para o FNM surgia em 1972: a cabine herdada do Alfa Romeo Mille feito de 1958 a 1964, fixada ao chassi com componentes elásticos e dotada de ventilação forçada e aquecimento. As prensas vieram da Itália, que não as usava mais. As versões eram 180, com motor de 11 litros e 180 cv, três opções de entre-eixos e terceiro eixo opcional; e 210, com motor de 215 cv e transmissão com reduzida, disponível apenas como cavalo mecânico.

Os novos “Fenemês” conseguiram boa aceitação, o que elevou as vendas a mais de 3.600 unidades em 1974, mas novas mudanças de controle estavam por vir. A Fiat adquiria da Alfa Romeo 43% das ações da FNM, mantendo-se 51% nas mãos da Alfa. Dois caminhões menores eram apresentados naquele ano no Salão do Automóvel. Entre os pesados, o FNM 210/S vinha com motor de 13 litros e 240 cv e capacidade de carga de 12,6 toneladas (50 em reboque).

Os modelos 180 (azul) e 210 (vermelho) eram derivados do Alfa Romeo Mille; embaixo, os caminhões 190 E (no anúncio) e 130, lançados já sob comando da Fiat

A sigla FNM ainda aparecia acima da grade dos novos modelos lançados pela Fiat em 1976: o 70, para sete toneladas com motor de 90 cv, e o 130, para 13,7 toneladas e com 145 cv. O Fiat 190 E seguia como evolução do FNM 180, com motor Fiat de 13,8 litros e 270 cv e transmissão de nove marchas. Contudo, no mesmo ano a Fiat assumia as ações da FNM que pertenciam à Alfa, ganhando o controle de 94% da empresa.

Com a razão social alterada para Fiat Diesel em 1977, a companhia manteve a produção de caminhões em Duque de Caxias até 1985. Depois de 36 anos da pioneira cooperação com a Isotta-Fraschini, a trajetória da “Fenemê” chegava ao fim com 78 mil caminhões fabricados, cerca de 55 mil deles com a famosa combinação de três letras na grade.

Fonte: https://bestcars.uol.com.br/bc/destaques/historia-fnm-caminhoes-d7300-d9500-d11000-v10-v12-v13-v17/