Cruzeiro em crise: legislação e desunião alimentam inadimplência no futebol

Lei em Campo

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós graduado e mestrando em Direito Desportivo, é conselheiro do Instituto Ibero Americano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

13/01/2021 10h01

Andrei Kampff

Foi notícia de destaque nos principais veículos de conteúdo esportivo, Cruzeiro se negam a concentrar. Duas questões importantes de cara: os jogadores estão dentro do seu direito e a notícia não choca mais ninguém,

Mas algo precisa ser dito, e lembrado. Não gritem apenas contra o Cruzeiro. Essa é também a situação Botafogo, futebol brasileiro.

A verdade é : a lista é grande. E fica ainda mais difícil de aceitar quando a gente trata de equipes com orçamentos milionários.

E a autorregulação do esporte também precisa ajudar a combater o problema.

Agora, Cruzeiro. Antes, o exemplo dos atletas do Figueirense

Em 2019, os jogadores do Figueirense tomaram coragem e se posicionaram de maneira firme contra essa realidade : não entraram em campo por conta de salários atrasados (chegou em seis meses!). Uma decisão importante, mas que não mudou a realidade brasileira.

Agora, os jogadores do Cruzeiro vivem situação parecida e decidiram se posicionar.

Nesta terça (12), o grupo se reuniu e decidiu não concentrar para a partida contra o Oeste (13) pela série B do Brasileiro.

O Cruzeiro se pronunciou e disse ao UOL Esporte que : “O clube confirma que houve uma reivindicação por parte dos atletas, e que a diretoria e o departamento de futebol, entendendo o momento e a legitimidade da reivindicação, atenderam ao pedido”,

O Cruzeiro ainda não pagou os valores referentes a outubro, novembro, dezembro e 13º salário.

Pela legislação, atleta tem direito a entrar na Justiça e pedir a rescisão indireta do contrato de trabalho. A gente já chega lá.

Antes, algo importante.

Por que essas situações ainda são raras no futebol, apesar da corriqueira inadimplência dos clubes? É fácil entender por quê.

Não vale a resposta óbvia da falta de profissionalização da gestão esportiva.

Vamos avançar.

Resumindo, porque os regulamentos do futebol são fracos e dificultam o direito do atleta de lutar para receber por serviço prestado, e não complicam a vida do clube devedor. E tem mais uma questão que precisa ser reforçada: a verdade é que a classe dos atletas é desunida no Brasil e com isso perde força de pressão e negociação na luta por direitos.

Importante entender

Antes de tratar disso, duas considerações importantes: primeiro, pagar em dia é compromisso de todo gestor responsável; segundo, jogador de futebol é um trabalhador, também para fins legais. Um contrato com algumas especificidades, por isso chamado de Contrato Especial de Trabalho.

A CLT garante, no art. 483, D, rescisão de contrato no caso de inadimplemento do empregador. A Lei Pelé, no art. 31, fala que atleta também pode buscar a rescisão se o clube atrasar em três meses ou mais seu salário. Vale também para FGTS e contribuições previdenciárias.

Pela FIFA, a rescisão já é possível a partir de dois meses de atraso salarial.

Mas atleta não quer rescindir contrato, ele quer trabalhar. E receber.

De novo, o caso do Figueirense.

Os jogadores, com salários atrasados, decidiram não entrar em campo pela série B. O clube foi declarado perdedor por WO, pelo placar de 3 x 0.

O clube catarinense devia a seus atletas. Os jogadores tentaram conversar, até inclusive fizeram greve, em um exercício legítimo na busca por seus direitos, até chegar a posição mais dura.

Mas essa é uma realidade de vários clubes, como o Cruzeiro. E por que ela não gerou um efeito cascata?

Por dois motivos.

Primeiro, a questão legal.

A legislação é fraca e dificulta o direito do atleta de lutar para receber por serviço prestado, e não complica a vida do clube devedor.

O Regulamento Específico do Campeonato Brasileiro, no artigo 20, determina que “o clube que, por período igual ou superior a 30 (trinta) dias, estiver em atraso com o pagamento de remuneração, devida única e exclusivamente durante a competição, conforme pactuado em Contrato Especial de Trabalho Desportivo, a atleta profissional registrado, ficará sujeito à perda de 3 (três) pontos por partida a ser disputada, depois de reconhecida a mora e o inadimplemento por decisão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva” (no Regulamento da série B é o art. 17).

E olha o paragrafo 1º:

§ 1º – Ocorrendo atraso, caberá ao atleta prejudicado, pessoalmente ou representado por advogado constituído com poderes específicos ou, ainda, por entidade sindical representativa de categoria profissional, formalizar 12 comunicação escrita ao STJD, a partir do início até 30 (trinta) dias contados do encerramento do CAMPEONATO, sem prejuízo da possibilidade de ajuizamento de reclamação trabalhista, caso a medida desportiva não surta efeito e o clube permaneça inadimplente.

Há dois problemas sérios nessa autorregulação:

– o atraso tem que ser reconhecido pelo STJD, (salário é competência da Justiça Desportiva?)

– o atleta prejudicado deve ir pessoalmente (ou enviar advogado por ele constituído) formalizar denúncia no STJD.

Sério?

Que atleta vai denunciar o clube em que joga? Se o time perder pontos, qual o clima dele com a torcida para continuar jogando?

Por que a denúncia não pode ser feita pela Procuradoria? Ou por um terceiro? E por que precisa ser via STJD?

Mas o que fazer, então?

Se a CBF quer realmente combater esse problema, precisa mudar o que escreve.

Outra questão que ajuda os clubes devedores, além de não sofrerem punição esportiva por não haver denúncia dos atletas (claro): eles ainda podem continuar contratando.

Isso mesmo: o fair play financeiro no Brasil ainda não chegou ao Brasil (será que nesse ano ele realmente chega?), como já existe na Europa.

Agora, outra questão importante: desunião dos atletas.

E. diante de um quadro tão complicado, um silêncio decepcionante.

Não existe nenhum tipo de mobilização que vença uma desesperança reinante.

Nem através da sociedade, muito menos dos próprios jogadores.

O atleta que sua, que brilha, que cria, é também o mesmo que pensa muito mais em si (como em quase todas as categorias), esquecendo a essência coletiva do esporte. Que esquece o poder do grupo na defesa de causas plurais.

Ou você já viu um movimento de classe, de jogadores de diferentes realidades, lutando por uma causa única no futebol daqui?

Bom Senso F.C.?

Foi um embrião de algo que se perdeu por pressão dos clubes, pelo baixo engajamento dos atletas, por uma agenda desfocada e pela absoluta falta de compreensão da responsabilidade que a classe tem com cada um dos jogadores.

Isso ajuda a entender porque no Brasil os sindicatos de atletas não têm representatividade.

Então, engula essa, na Argentina é diferente.

Muito por ser um país com deficit educacional bem menor do que o nosso, os atletas entendem o compromisso que têm com o atleta. Mesmo recebendo em dia e bem, vários já pararam a bola para defender aqueles que recebem mal ou nem sequer recebem. Greve.

Força coletiva. Espírito de grupo.

E, uma pergunta importante. Você, torcedor, já protestou contra seu clube por salário atrasados?

Então, você também pode ajudar.

A esperança do CNRD

No último ano, a Câmara Nacional de Resolução de Disputas, uma corte arbitral da CBF, apresentou um caminho que pode ajudar no combate a esse problema.

Ela puniu de maneira enérgica clubes como o Vasco e o Sport, impedindo que esse registrassem a contratação de novos atletas em função de dívidas trabalhistas.

O bloqueio do cadastramento de atletas em qualquer caso trava o sistema de registros. A CBF é notificada da decisão do CNRD e bloqueia o clube, passando a ser impossível registrar atleta novo no BID.

Por ter atingido dois clubes grandes, a decisão mostrou uma necessária força que o CNRD precisa ter, mas também serviu como uma espécie de alerta a todos os outros clubes devedores: paguem, ou a situação vai complicar de verdade.

Importante também destacar a eficácia da medida.

Ela deu a um problema grave a celeridade que a Justiça Trabalhista muitas vezes não tem. Além disso, a decisão também teve algo importante: efetividade. Ou seja, “não pagou, não inscreve”. E, de fato, o clube não inscreve novos jogadores.

Dá pra mudar!

Sim.

A decisão do CNRD dá uma esperança, mas é preciso mais.

Com união dos atletas, um verdadeiro sindicato, e mudanças nas regras.

Isso, a CBF precisa colocar em prática o seu fair play financeiro urgentemente. E avançar nesse combate.

Se jogadores não se unirem, se CBF não atacar o problema de frente, os clubes devedores agradecem. E continuarão não honrando o básico.

E manchetes como a do Cruzeiro continuarão a pipocar em alertas em nossos smartphones.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/lei-em-campo/2021/01/13/cruzeiro-em-crise-legislacao-e-desuniao-alimentam-inadimplencia-no-futebol.htm