Covid e nacionalismo destroem sonho dos chineses de trabalhar menos

Felipe Zmoginski

Felipe Zmoginski foi editor de tecnologia na revista INFO Exame, da Editora Abril, e passou pelos portais Terra e America Online. Fundou a Associação Brasileira de Online to Offline, foi secretário-executivo da Associação Brasileira de Inteligência Artificial e head de marketing e comunicações do Baidu no Brasil, companhia líder em buscas na web na China e soluções de inteligência artificial em todo o mundo. Há seis anos escreve sobre China e organiza missões de negócios para a Ásia.doras e compreender a ascensão da nação pobre que se tornou potência mundial em menos de três décadas.

07/02/2021 04h00

O caso já é um clássico da sociologia e repete-se de tempos em tempos, em diferentes sociedades, em diferentes épocas. Um país empobrecido encontra um caminho para prosperar e uma geração inteira trabalha incansavelmente em busca do sonho de prosperidade. Enriquecidas, as novas gerações contestam as regras vigentes e buscam uma vida com mais equilíbrio.

Foi assim com os imigrantes americanos, no início do século 19, ou com os japoneses, no pós-guerra. As gerações que os sucederam, em ambos os casos, não tinham a mesma vontade de sacrificar-se.

Na China dos últimos 30 anos, o trabalho exaustivo tornou-se um trunfo —e uma fragilidade— do país. Na década de 2010, por exemplo, a iPhones e iPads, cometiam suicídio nas plantas industriais de Shenzhen, deprimidos com jornadas que ultrapassavam as 70 horas semanais.

Nas big techs chinesas, o fenômeno se repete há anos, ainda que não haja o desgaste físico do trabalho braçal em empresas de software, comércio eletrônico e soluções digitais. Chamada de “996”, a jornada nestas empresas é, frequentemente, definida pelo início às 9h da manhã e fim às 9h da noite, seis dias por semana.

Em maio de 2019, no entanto, uma pequena revolta iniciou-se nos fóruns online chineses, após uma jovem de 23 anos, funcionária do social-commerce Pin Duo Duo morrer após uma jornada que se estendeu até à 1h30 da madrugada. O diagnóstico da morte foi “estafa”.

Casos parecidos, envolvendo mortes, afetaram, em 2019, empresas de aplicativos de delivery. Em um dos casos mais rumorosos no país, um entregador decidiu colocar fogo no próprio corpo em protesto contra a política de pagamento por fretes.

Os eventos levaram muitas empresas a criar regras que desincentivam seus colaboradores a trabalhar demais.

Jovens profissionais também passaram a valorizar mais o tempo com os amigos e família, para incompreensão dos chefes mais velhos, criados sob uma lógica de que o trabalho é benéfico, traz progresso pessoal e para o país.

O que parecia ser uma mudança cultural em curso, no entanto, registra um retrocesso desde a eclosão da epidemia de covid-19 na China.

Nas empresas de tecnologia, o fato de ser possível trabalhar em casa tornou as jornadas infinitas, uma vez que a única forma de mostrar ao chefe que se está produzindo é estar disponível o tempo todo. Os constantes lockdowns também criaram uma demanda maior por serviços digitais, o que levou empresas do setor a pressionarem mais seus colaboradores para atender a demanda.

Por fim, o movimento anti-China, liderado por personalidades como o ex-presidente americano Donald Trump, e as constantes acusações de que o país é o culpado pela crise de covid, geraram um sentimento nacionalista que impulsionou as empresas e os trabalhadores a dedicarem-se mais, como se fosse necessário dar uma resposta ao mundo sobre a capacidade de organização e produção dos chineses.

O resultado desta equação é que o vislumbre de uma vida menos ocupada, insinuado com os protestos digitais de 2019, parece ter-se perdido.

Na China pós-covid-19, como antes de 2019, o sinônimo de bom cidadão e bom trabalhador voltou a ser o da cultura 996.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/felipe-zmoginski/2021/02/07/pandemia-adia-sonho-de-trabalhar-menos-nas-techs-chinesas.htm