Controle de quem tomou vacina é um papel; e se fosse certificado digital?

Letícia Piccolotto

Letícia Piccolotto especialista em gestão pública pela Harvard Kennedy School, presidente da Fundação Brava e fundadora do BrazilLAB, primeiro hub de inovação que conecta startups com o poder público. Em 2020, foi a única brasileira na lista das 20 principais lideranças mundiais em GovTech da Creators, laboratório de inovação sediado em Tel Aviv (Israel).

23/01/2021 04h00

Na última semana, duas vacinas contra a covid-19 —a CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório Sinovac, e o produto elaborado pela farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford— foram aprovadas pela Anvisa no Brasil. No mesmo dia, assistimos à primeira brasileira receber o imunizante. Não posso negar que a notícia encheu meu coração de esperança.

Mas um pequeno detalhe no evento do último domingo chamou minha atenção. Após ser vacinada, Mônica Calazans, enfermeira do Instituto Emílio Ribas, mostrou com orgulho o documento que atestará a sua imunização: um cartão no qual é possível ler “campanha contra a Covid-19” e duas colunas, uma para cada dose da vacina.

Torço para que todos e todas possam receber algo parecido dentro dos próximos meses, mas é inegável a surpresa ao constatar que a confirmação de nossa imunidade virá de uma tecnologia tão básica: um pedaço de papel.

Passaportes de imunidade

O início da vacinação retoma uma discussão que teve início nos primeiros meses da pandemia, quando pesquisas apontaram para a possibilidade de que pessoas recuperadas da doença pudessem desenvolver anticorpos e, acreditava-se, imunidade a novas contaminações.

Mesmo sem informações suficientes para atestar por quanto tempo esses indivíduos estariam imunes e, principalmente, se poderiam ser vetores do vírus para pessoas ainda não expostas, houve um intenso debate sobre a criação dos chamados “passaportes de imunidade”, algo que possibilitaria que pessoas curadas pudessem retornar à normalidade —seja lá qual fosse ela.

Frente a esse debate, e de maneira muito acertada, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e outros atores, especialmente pesquisadores, rapidamente se posicionaram sobre o tema, apontando os dilemas técnicos, operacionais e, sobretudo, éticos desta medida.

Em maio de 2020, a revista Nature publicou um excelente artigo com dez razões pelas quais o chamado “passaporte de imunidade” seria uma “má ideia”. Sem dúvidas, a principal delas é que a chamada imunidade “natural”, ou seja, aquela advinda da exposição à doença, seria mais um fator de exclusão, segregação e, em última instância, desigualdade.

O chamado “passaporte de imunidade” contraria o próprio conceito de saúde pública ao incentivar uma visão individual em detrimento do coletivo.

Com a vacina, o debate que se coloca agora é muito diferente. Estamos falando do desafio de atestar que cada indivíduo recebeu o imunizante de forma adequada, evidenciando a proteção e possibilitando o retorno de atividades que hoje estão suspensas como, por exemplo, viagens internacionais.

No Brasil, ao que tudo indica, esse certificado estará disponível a partir de um cartão impresso, físico e que deverá ser armazenado por seu portador.

E este não é um cenário exclusivamente nosso. Estados Unidos e o Reino Unido já iniciaram seus esforços de vacinação e têm utilizado um método semelhante para certificar a vacinação: cidadãos recebem cartões impressos nos quais são registradas informações específicas sobre o recebimento do imunizante.

Mas há exemplos alternativos. Nações como Israel, já iniciaram a emissão de certificados digitais, chamados de “green booklet”.

A Estônia, por sua vez, referência em governo digital, tem atuado em conjunto com a OMS para a construção dos chamados “e-vaccination certificates” com o objetivo de garantir um acompanhamento da vacinação nos países. Dado que a pandemia é um desafio global e não local, o esforço de imunização deve ser coordenado.

Para além das experiências de países, há outras iniciativas surgindo, como a “Covid-19 Credentials Initiative“, uma comunidade global que reúne projetos de certificação de imunidade à covid-19 e a “Common Pass“, desenvolvida em parceria com o Fórum Econômico Mundial e a Rockefeller Foundation, e que tem como objetivo atestar digitalmente os registros de saúde —sejam testes PCR ou vacinação— de viajantes de todo o mundo.

Também temos algo semelhante no Brasil, ainda que aplicado a outro contexto: o certificado de profilaxia contra a febre amarela, requisito obrigatório para a entrada em diversos países, pode ser obtido a partir do portal Gov.br.

Todas essas iniciativas têm uma só finalidade: garantir que os registros de saúde relacionados à covid-19 sejam disponíveis, interoperáveis, seguros e, sobretudo, confiáveis.

Se comparados à sua versão física e offline, os e-certificados são muito mais ágeis e trazem maior comodidade para os usuários. Mas eu arrisco dizer que vão muito além.

O que está em jogo

Os instrumentos de certificação digital sinalizam para uma gestão de saúde pública muito mais efetiva. Eles não só serão fundamentais para garantir segurança e a possibilidade de afrouxamento de algumas restrições de circulação e funcionamento de serviços, mas também indicam como o processo de vacinação, especialmente a gestão de dados, pode estar sendo conduzido.

Embora não saibamos todos os detalhes do plano nacional de vacinação, é seguro dizer que ele ocorrerá em “ondas”. Sendo assim, será fundamental identificar quem são as pessoas vacinadas, o que inclui mapear características como sexo, idade, residência, histórico de saúde, entre outras informações.

Tais dados serão fundamentais para implementar as estratégias de vacinação, reforçar medidas em localidades específicas e, principalmente, acompanhar o alcance da chamada imunidade de rebanho.

E nesse ponto retomo à imagem do certificado de vacinação impresso: parte considerável dos municípios brasileiros, especialmente os que estão em maior situação de vulnerabilidade, não dispõem de mecanismo para garantir o registro digital e online que permitiria o acompanhamento dos indicadores de vacinação.

Pesquisa do Cetic.br do ano de 2019 traz a dimensão do desafio: 84% das Unidades Básicas de Saúde (UBS) fazem a manutenção das informações clínicas e cadastrais nos prontuários dos pacientes exclusivamente de forma impressa ou parcialmente em papel e parte em formato eletrônico.

A grande questão é: os dados de saúde que estão disponíveis no papel impossibilitam qualquer tipo de acompanhamento ou análise sobre a imunização.

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A ideia de um certificado digital de vacinação que possa ser acessado pelo cidadão pode parecer algo supérfluo em um momento no qual a urgência é vacinar o maior número de pessoas e garantir a segurança de todos.

A realidade é que, mais do que garantir comodidade e segurança, a certificação digital assegura que a etapa anterior foi cumprida: temos sistemas eficazes nos quais as informações são registradas e permitem o acompanhamento adequado de quem, quando e em quais condições foi imunizado contra o coronavírus.

Por esse motivo, e ao lado de outros desafios tão complexos, como a disponibilidade de seringas e imunizantes, uma gestão estratégica das informações sobre a vacinação contra a covid-19 será imprescindível.

Ainda que o desafio que temos pela frente seja algo muito próximo dos 12 trabalhos de Hércules, afinal, estimativas da consultoria McKinsey apontam que a imunidade de rebanho demandaria a vacinação de 90% da população dos EUA, o que, em escala global, representaria algo próximo a 6,8 bilhões de pessoas, estamos mais próximos do que nunca de vencermos a pandemia de coronavírus.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/leticia-piccolotto/2021/01/23/o-desafio-de-saber-quem-foram-os-vacinados-contra-a-covid-19.htm