Como usar ciência cognitiva para ter leis melhores e barrar decretos ruins

Álvaro Machado Dias

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica “Frontiers in Neuroscience”, membro da Behavioral Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: [email protected]

13/04/2021 04h00

Em fevereiro deste ano, Bolsonaro assinou quatro decretos que flexibilizam bastante as restrições existentes para a compra de armas e munições. Senadores vêm se articulando para derrubá-los antes que se tornem lei, em 12/04/2021.

Estudos mostram que a flexibilização das restrições é muito ruim para a sociedade como um todo, ainda que possa beneficiar alguns. Este é só mais um caso de lei ignorando aquilo que as evidências indicam. Por quê? Por que será que tanta lei é proposta na contramão das evidências?

A razão imediata é clara: interesses pessoais e de grupo. Porém, a minha tese é de que o problema não pare por aí, possuindo também um aspecto estrutural: o direito ainda não incorporou as metodologias mais avançadas para a modelagem de sistemas complexos, que poderiam gerar evidências muito mais fortes sobre o tal interesse da sociedade, inibindo um pouco a prática.

Como chegar lá? Saindo do seu isolamento epistemológico e se aproximando da ciência cognitiva, como tantos outros campos vêm fazendo para modelar os seus próprios sistemas complexos. O artigo de hoje discute isso, com a máxima simplicidade que o tema permite.

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As tendências que mais influenciam a vida humana são ao mesmo tempo cíclicas e progressivas. A sociedade evolui, ao passo que os elementos do progresso entram e saem de moda.

Uma tendência que expressa bem isso é a hiperespecialização. Entre a metade do século 19 e a metade do século 20, foram criadas mais áreas especializadas do conhecimento do que no milênio precedente. E esta tradição continuou e se tornou a própria definição do que é progresso para muita gente.

Porém, em meados do século passado, um movimento de direção contrária começou a ganhar força. As áreas que abrigam a hiperespecialização começaram a implodir paredinhas, tal como se as crianças tomassem a sala de aula. Não tardou para que alguns dos alunos mais ousados percebessem que interessante mesmo seria fundir campos inteiros. Disso nasceu a ciência cognitiva, que é para mim a maior empreitada científica do século 20 e do atual.

A ciência cognitiva é o ponto de encontro da matemática, biologia e das neurociências. É também da psicologia, linguística, psiquiatria e ciência da computação. Acima disso tudo, é uma área marcada pela receptividade e interesse pelos sistemas complexos baseados em informação e inteligência. A ciência cognitiva é uma espécie de união europeia do conhecimento.

Os caminhos que ela oferece lembram viagens no tempo, ora ao futuro, ora de volta às ágoras gregas, onde a regra era desconfiar das coisas muito esquemáticas e investir sem medo nas chamadas teoria de tudo, o que hoje é conhecido como “multidisciplinaridade”.

Na Europa da ciência cognitiva, vale a regra de que ser cidadão do todo não torna ninguém menos cidadão das partes. Por exemplo, do ponto de vista mais aplicado sou neurocientista, já que fiz meu PhD, pós-doutorado e livre-docência na área. Mas, no dia a dia, eu cruzo essa Europa para levar aquilo que sei para outras partes, assim como sou visitado na WeMind, que é o escritório de inovação do qual sou sócio, por gente que precisa resolver desafios tecnológicos ou conceituais pouco triviais.

Há alguns anos e mais ou menos por acaso, acabei abrindo uma nova área que é a da produção de experimentos científicos, com neurociências e modelagem computacional, para ajudar a resolver conflitos de trade-dress, concorrência desleal e afins.

A criação destes métodos acabou me aproximando do direito, onde reside uma parte do interesse na discussão. E isso por sua vez me levou à pergunta: será que existe um lugar para o direito na revolução cognitiva ou não?

Note que não estou falando de um lugar para as neurociências no direito. Esse, para mim, é óbvio. Assim como é o do design thinking e de outras disciplinas específicas. A dúvida acontece quando a gente olha a via contrária.

Se a ciência cognitiva é a Europa, o direito é o Reino Unido, separado por tradições e políticas regulatórias que se encontram com o mar. O eurotúnel do direito passa sob o canal da mancha e, 50 quilômetros à frente, chega à economia. Ali do continente, atravessa-se a fronteira à biologia, já que tanto esta quanto aquela lidam com a alocação de recursos escassos e contam com um vasto repertório para tratar de oferta e demanda.

Muita gente assume que mercados são construções humanas. Está errado. Mercado é um jeito de falar da coordenação sob escassez. Os mercados humanos, culturalizados, são uma continuação dos mercados naturais. Por exemplo, o bonobo, que é o primata mais parecido conosco, gosta muito de cafuné. E também tem essa coisa de achar os bebês fofos, sobretudo as fêmeas.

Quando nasce um bebê, a mãe o põe na roda. Mas com uma condição: para brincar com seu filhote tem que fazer cafuné nela. Pois o que se observa é que quando cresce a disponibilidade de bebês no grupo, o tempo de cafuné dedicado às mães decresce. Isto ocorre de maneira quase linear, como tantas curvas da demanda que vemos por aí. É o mercado do cafuné funcionando exatamente como num livro de microeconomia. E é aí que entra o direito como um novo território, fora do continente. Certo?

Veja, no planeta dos macacos só existe pagamento imediato. Ninguém topa pagar antecipado, ninguém aceita vender fiado. Me empresta aqui seu bebê macaco, que depois eu te faço um cafuné. Não! Nem a pau! Você não vai me fazer esse cafuné. Me faz um cafuné, que depois eu te empresto meu bebê macaco. Não, nem, você não vai me emprestar esse bebê.

A ausência de contratos barra a sofisticação dos mercados naturais. Protoeconomia os macacos já têm. Regras compensatórias não, muito menos um ecossistema que garanta a sua execução.

É por isso que o direito não se mistura. O seu mundo é hiperespecífico por definição.

Certo? Neste caso, sim. Porém a gente não pode esquecer a parte que diz respeito à previsão e modelagem comportamental, subsumidas nas leis e em suas interpretações.

Por exemplo, o papel principal das medidas repressivas é reduzir comportamentos nefastos na sociedade. Isto cria um mercado. Porém não é um mercado típico, como esse dos bonobos, mas um que parece morar atrás do espelho das trocas convencionais.

Em tese, o aumento do rigor punitivo, significando custo, gera redução na demanda, significando crimes e contravenções. Este aumento, no entanto, recai de maneira negativa sobre toda a sociedade. E traz um monte de consequências que também têm que ser incorporadas nas tomadas de decisão sobre leis e suas aplicações.

No final das contas, importa mesmo encontrar a função que maximiza a relação entre custo social da lei e redução na taxa do comportamento-alvo. Esta é uma espécie de Graal, que tem no seu caminho o desafio da identificação das diretrizes do comportamento inibitório e o da precificação social das externalidades.

Em setembro de 2020, a sexta turma do STJ determinou que juízes e desembargadores da Justiça de São Paulo não deveriam levar à prisão os condenados por tráfico privilegiado de drogas, isto é, comércio de pequenas quantidades, por réus primários, sem ligação conhecida com o crime organizado.

A ideia é que as prisões servem de base de recrutamento para as organizações criminosas e o encarceramento dessas pessoas produz um desfecho global pior para a sociedade do que a aplicação de penas alternativas. Isto é assim porque a ameaça de penas mais severas mostrou-se incapaz de inibir o tráfico de drogas, em primeiro lugar, conforme os dados mostram e os juristas de A à Z reiteram.

Num mundo ideal, esta conclusão estaria dada de antemão, por meio de mapeamentos motivacionais e antimotivacionais, baseados em evidências, combinados a análises de custo/benefício, capazes de levar todos os fatores relevantes em consideração.

Faz sentido? Para todo mundo que acha que faz, coloco uma questão: como este tipo de coisa deve ser operacionalizada? Como modelar as cestas de ofertas punitivas para que o mercado do crime e contravenção se desaqueça sem que a vida como um todo termine pior do que de início?

A ciência cognitiva fala em três caminhos: testes A/B, revisões sistemáticas e simulações.

Aplicados ao nosso problema, testes A/B funcionariam assim: para um grupo eu aplico uma pena, enquanto para outro aplico outra. Depois meço a reincidência nos dois grupos e acrescento aqueles custos todos que mencionei antes. No direito, isso não é possível. É antiético.

Revisões sistemáticas funcionariam assim: identifico padrões nas sentenças, por exemplo, padrões históricos, do tipo no período tal a prática foi essa; neste outro período, foi aquela. E tento correlacionar desfechos. Dá para fazer também pela comparação de países.

É certamente melhor que a anterior, mas também é limitada. O crime num determinado período pode ter baixado não por causa da lei específica em vigor, mas por causa de alguma outra coisa que não chegamos a conhecer. Do mais, o que nos importa é construir um futuro melhor. Fazer isso com base no passado é deixar de lado a oportunidade de superá-lo.

Então, finalmente, chegamos à simulação. A ideia da simulação é criar modelos sistemáticos cujos outputs sejam as consequências das leis e de suas interpretações sobre o comportamento, à luz do custo/benefício para a sociedade como um todo.

Esta é a ponte com a ciência cognitiva: toda população, humana ou não, é um sistema complexo para o qual valem algumas regras.

A grande diferença de abordagem é que nas ciências cognitivas é assumido que o mapeamento de tudo o que pode acontecer no interior de organismos complexos como a sociedade humana não cabe na mente de uma pessoa ou grupo, por mais brilhante que seja.

É sempre bom contar com sistemas de apoio decisório, como as simulações baseadas em inteligência artificial que rodam em supercomputadores. Esta é a única maneira de tornar estes problemas tratáveis, sob as nossas limitações neurocognitivas.

Vou dar um exemplo. Legalização das drogas. De um lado temos:

  • completa proibição de todas
  • liberação do consumo de algumas
  • liberação do comércio de algumas
  • liberação da fabricação ou cultivo de algumas
  • liberação de cada uma dessas coisas para várias drogas
  • liberação de algumas dessas coisas para todas
  • liberação de todas essas coisas para todas

Do outro lado temos:

  • multa, prisão e diversas formas de penalização alternativa,
  • além dos diversos custos adjacentes.

Fiz um cálculo por cima e notei que um modelo capaz de injetar um pouco de racionalidade a este debate teria que contar com cerca de um milhão de parâmetros. Para começar. Aí eu pergunto: será que não valeria colocar este experimento no centro da discussão? Mais ainda, este tipo de coisa não deveria fazer parte do toolbox da disciplina?

Parece-me que seria um bom caminho para chegarmos a um conjunto menor de alternativas, mais fortemente associadas ao bem comum, de modo que policy makers e juristas possam navegar com mais segurança este mar revolto.

A mesma coisa vale para impostos, incentivos fiscais, limites de velocidade.

Não há nada separando a lógica que rege a quantidade de pontos na carteira que cada infração de trânsito deve gerar da lógica usada nos programas de fidelidade, no que se refere à modelagem das regras ideais de pontuação.

Será que o fato de que 100% dos grandes programas de fidelidade utilizam simulações, que usam inteligência artificial e rodam em supercomputadores, sugere alguma coisa para nós, interessados na evolução das leis, das políticas públicas e de outros objetos informacionais complexos?

Por que estas coisas não estão disponíveis no direito? É para responder a este tipo de coisa que eu acho que o direito deveria se aproximar da ciência cognitiva, que tem na modelagem de sistemas complexos o seu dia a dia.

Não se trata de substituir as decisões humanas por decisões maquínicas. Isto é sempre uma má ideia, como tantos já disseram e alguns até demonstraram.

Interessante mesmo é tomar decisões a partir do contato com aquilo que define a nossa humanidade, mas não sem antes consultar cenários hipotéticos, criados a partir de quantidades colossais de informação, tal como, mais e mais, vem se tornando a regra no tratamento rigoroso de sistemas complexos.

Acima de tudo, interessante é adotar o princípio de que para o bem comum, a união faz a força.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/alvaro-machado-dias/2021/04/13/como-fazer-leis-melhores-e-se-contrapor-a-decretos-deleterios.htm