Como lancei uma startup de tecnologia em meio à pandemia

Etienne Du Jardin

Há 17 anos no mercado publicitário e de tecnologia, já participou de projetos importantes para grandes marcas do portfólio da Unilever, Coca-Cola, Mondelez, Pepsico, PG, Danone, Ambev, Adidas e Google, entre outras.
Atua há 4 anos como consultora de negócios, produto e impacto, onde atende startups de tecnologia, agências e fundos investidores. É co-fundadora e chief product officer da startup MIMO.

23/12/2020 04h01

Quando a gente olha para o Brasil e vemos como ele é rico em seus recursos naturais, capital intelectual e cultural, e promissor em tantas frentes (que não me atrevo nem a listar) não parece nem o mesmo país campeão em desigualdades e com um gap tão grande na inclusão digital da população.

Entender porque não somos (ainda) referência global em produção tecnológica, como é o caso de Israel, China, Índia e Estados Unidos, por exemplo, não é difícil. Os investimentos e incentivos para tal não acompanham as necessidades exponenciais que um ecossistema forte de inovação exige. E não me refiro apenas a incentivos governamentais, mas também do quanto estamos distantes da cultura da colaboração, tão fundamental para construção deste cenário, que ainda engatinha por aqui.

O “quadro da desgraça” todo mundo conhece. Não é nele que quero focar. Quer focar, sim, nas mudanças que acredito serem necessárias para fortalecermos juntos essa potência inovadora que é o Brasil (e, às vezes, esquecemos).

Muitas startups, de diversos setores, quebraram nesta pandemia. Centenas de profissionais da área foram desligados do dia para noite e a nova realidade começou a bater em nossa porta.

E como acontece em qualquer sociedade criativa, passados alguns meses, novas startups começaram a surgir. Grande parte delas focada em resolver os problemas novos que apareceram (ou se agravaram) junto com a crise global do coronavírus.

Partindo de um conceito simples, que é construirmos negócios ancorados em propósito, a luz no fim do túnel começou a ser vista por muitos empreendedores. E a Mimo é uma destas startups que nasceu em meio a pandemia para tentar mudar a realidade.

As oportunidades nascem das adversidades

Até quem não trabalhava com comércio diretamente, não conseguiu ficar alheio ao impacto causado pelo lockdown no mercado varejista. Com centenas de milhares de lojas fechando sem data para reabertura, em um país onde o e-commerce representa uma fatia pequena, pouco mais de 10% do mercado total de varejo, o cenário era apocalíptico!

Sabíamos que poucos comércios (no universo dos 1,6 milhões listados pelo IBGE em 2014) contavam com uma reserva de emergência ou uma área de marketing bem estruturada para passar por isso de forma ilesa.

Buscando alguma solução para mitigar esse problema, minha sócia começou a observar as mudanças que chegavam a galope para todos nós. Pesquisando mercados emergentes ou de referência, chegou na solução de vendas online que explodia na China, o “shopstreaming” (mercado este que movimenta nada menos do que centenas de bilhões de dólares desde 2016).

A esta altura, já sabíamos que a aceleração digital era um caminho sem volta por essas bandas. E abraçadas ao problema que atingia todo e qualquer comerciante, começamos a “tropicalizar” o modelo que acreditávamos ter total aderência cultural com o comportamento de consumo brasileiro.

A pergunta que fazíamos todos os dias para nós mesmas enquanto estruturávamos nosso plano de negócio era: “De que forma uma solução de varejo pode resolver o problema de uma sociedade?”. E até que a resposta não estivesse clara como água, não nos permitíamos avançar.

A geração de valor para todos através do shopstreaming

“Criar uma solução de tecnologia que seja democrática e beneficie o maior número de pessoas, independente da sua região, classe social, gênero, cor ou orientação sexual, gerando inovação e impacto positivo para todos os steakholders”, foi a resposta que chegamos.

Ao definir nosso propósito, base do negócio que queríamos construir, começamos a tomar as decisões. A primeira delas era formar um time inclusivo, pois não existe possibilidade de criar uma solução inovadora e abrangente, se não imprimirmos essa diversidade no time que desenvolve e pensa no produto.

Criamos o plano estratégico de time e abrimos vagas intencionais para serem preenchidas por mulheres, negros e LGBTQIA+. Para oferecer uma solução que estivesse atenta aos mercados regionais, já que nossa escalabilidade depende disso, implementamos o “anywhere office”, onde captamos talentos de outras regiões além de São Paulo.

Um ecossistema com vontade de compartilhar visões

Enquanto eu fazia a validação do produto pela perspectiva de economia comportamental, acionei minha rede de conhecimento. E foi lindo de ver!

Muitos profissionais do ecossistema de inovação, tecnologia e comunicação estiveram disponíveis para troca de ideias e compartilhamento de visões. Inclusive opiniões de líderes (os ‘KOLs’, key opinion leaders) que não eram da minha rede (ou das minhas sócias).

Pessoas que entendiam que o compartilhamento de informações era importante para fortalecer o ecossistema se dispuseram por uma hora ou duas, para trocar experiências, dar conselhos e até sentar a crítica na nossa ideia (faz parte, rs).

Ter essa rede disponível no começo de tudo, foi muito importante. Além disso, o trabalho que muitas comunidades fazem no levantamento de estudos e dados de mercado, foi fundamental para embasar nossas hipóteses.

Ao ver tudo aquilo acontecendo, em um curtíssimo espaço de tempo, trancafiadas dentro das nossas casas (alô, pandemia), criando relações e conexões de forma virtual, sentimos que a Mimo poderia se tornar a plataforma que revolucionaria as vendas digitais para pequenos e médios empreendedores. Para os grandes também! Mas os pequenos e médios, desta vez, não ficariam à margem do avanço tecnológico.

O mais pessoal que o digital pode oferecer

Em quatro meses, super intensos, desenvolvemos a plataforma. Criamos a tecnologia do zero, baseada na estratégia que irá direcionar nossos passos daqui pra frente: ‘people first’, pesquisa, prototipação, validação e MVP. Em cada etapa, colocando as pessoas no centro da decisão: o que elas precisam? O que facilitaria a vida delas? Como elas podem transformar sua realidade com essa aplicação?

O principal impacto disso foi lançar uma plataforma baseada na internet e, não, um aplicativo. A maioria dos smartphones no Brasil não dá conta de baixar tanto app. E como poderíamos pedir para alguém fazer o download da plataforma, sem ao menos ter a opção de nos conhecer antes?!

Criamos uma experiência em ‘web app’, que proporciona que qualquer pessoa com internet (do 3G pré-pago ao wi-fi com fibra) possa acessar nossas lives e participar da experiência em tela única que oferecemos. Qualquer pessoa pode assistir, interagir e comprar, se quiser. Trazemos também entretenimento, conteúdo de qualidade e uma boa conversa, para entender quais são as necessidades futuras do nosso público.

No dia 23 de novembro lançamos a plataforma e sabemos que ainda temos muito o que fazer e melhorar. Sabemos que para atender todos e todas, precisamos pensar e agir, como poucos fazem.

Mas isso não nos gera medo, como muitos perguntam. Pelo contrário. Impulsionam nossa coragem cada vez mais, para que possamos ajudar o ecossistema a crescer e a tecnologia poder chegar em cada casa do Brasil, de forma simples, segura e realmente pensada para nosso mercado.

Temos que parar de ler os livros que todo mundo escreve lá fora, para criar um mercado digno dos próprios livros e métodos. E só na busca pela democratização da tecnologia para todos e todas, é que vamos conseguir.

Fonte: https://economia.uol.com.br/colunas/2020/12/23/oportunidades-e-adversidades-a-democratizacao-do-acesso-as-tecnologias.htm