Com assistentes de voz religiosos, surgirão no mundo os Jeff Bezos da fé

Álvaro Machado Dias

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica “Frontiers in Neuroscience”, membro da Behavioral Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: [email protected]

06/01/2021 04h00

Tanto em termos históricos, quanto neurobiológicos, as experiências religiosas são de dois tipos: um mais sensorial e outro tão sensorial quanto cognitivo. A pandemia acelerou a digitalização do primeiro. O que será que irá acontecer com o segundo? Leia e conheça a minha previsão para o futuro das religiões. E da tecnologia.

No começo éramos caçadores e coletores e vivíamos em grupos de no máximo 40 pessoas.

Éramos nômades —não por opção— mas pela constante necessidade de encontrar alimentos. O clima era predominantemente péssimo. E chamar a vida de roubada era considerado eufemismo.

Em torno de 12.000 a.C. o planeta concluiu uma profunda transformação ecológica, que encerrou a última glaciação. O clima se estabilizou e animais como mamutes e tigres dente de sabre começaram a sumir. A melhora no clima, ajudada pela escassez dos grandes mamíferos, levou-nos a inventar a agricultura, que possivelmente começou com uma forma selvagem de trigo, ainda que alguns digam que foi com centeio. Iniciava-se a maior revolução cultural de todos os tempos —uma que criou a civilização.

A origem da espiritualidade

Essa é a versão tradicional do surgimento da vida como a conhecemos. Outra é que os caçadores-coletores do tempo da pedra lascada eram, ao seu modo, místicos e decidiram construir templos. A tarefa hercúlea demandava fornecimento contínuo de comida, o que levou o pessoal mais proativo a buscar soluções, entre as quais figuraram alguns dos primeiros experimentos agrícolas da humanidade.

Tal é a tese do arqueólogo Klaus Schmidt, que por muitos anos liderou as escavações no Göbekli Tepe, um sítio arqueológico no sudeste da Turquia, onde se encontra um dos mais antigos templos do planeta (11.000 a.C.), construído por pessoas que desconheciam potes e outras tecnologias relacionadas ao desenvolvimento agrícola.

A tese de Schmidt está longe da aceitação universal, mas é importante por chamar a atenção para duas questões essenciais para quem gosta de pensar em “quem somos nós”.

A primeira é que a civilização pode ter surgido de diferentes maneiras, não tendo uma fórmula exclusiva. A segunda é que assuntos ligados à espiritualidade e às práticas religiosas acompanham-nos há tempos imemoriais, mas suas manifestações foram se sucedendo ao longo do tempo.

Em um artigo famoso sobre a origem dos sentimentos religiosos, pesquisadores da Universidade Cambridge afirmam: “não devemos desconsiderar a possibilidade de que pensamentos não-verbais de cunho religioso, bem como sentimentos associados, estivessem presentes entre os primeiros membros do gênero Homo (Peoples, Duda e Marlowe, 2016; p.263).

A transmissão cultural de construções mentais demanda linguagem; logo, a hipótese de que os sentimentos religiosos possam precedê-la é tratada como parte da tese mais ampla de que estes sentimentos sejam inatos e que, eventualmente, precedam o próprio surgimento da nossa espécie.

É isto que pensava a primatóloga Jane Goodall, que revelou o ritual da chuva, dos terremotos, do fogo, da observação da cobra píton e outros.

É preciso forçar a barra para tratá-los como manifestações espirituais e, ainda mais, religiosas. Por outro lado, tampouco dá para dizer que estes animais respondem de maneira meramente instrumental à natureza. Pelo contrário, eles reagem de maneira atipicamente emocional e ritualística, aparentemente sensibilizados pela sua força —tal é a ponte que alguns cientistas acreditam que exista em relação à espiritualidade humana. Confesso que sou um pouco cético.

Em 2004, o biólogo molecular Dean Hammer publicou o livro “O gene de Deus“, que apresenta a hipótese de que o gene VMAT2, responsável pela síntese de um transportador de monoaminas (como dopamina, serotonina, norepinefrina, etc.) seria um dos responsáveis pela espiritualidade na nossa espécie. Mais cópias de um alelo traduzem-se em maior espiritualidade e vice e versa.

A hipótese de Hammer não foi para a frente, em função de seu baixo poder de replicação —dizem as más línguas que a amostra que ele utilizou era muito pequena para tanta conclusão.

Por outro lado, ela popularizou uma nova linha de estudos: a neurobiologia das diferenças individuais relacionadas às experiências místicas e à religiosidade —a versão molecular do porquê seletivo da espiritualidade e da fé.

Um conduzido com mórmons (2018) sugeriu que a inclinação a ter experiências místicas ou espirituais (as quais estou tratando como uma coisa só, para poder focar no principal) está relacionada à responsividade de uma área do cérebro chamada núcleo accumbens, conhecida por ser ativada quando recebemos algum tipo de “recompensa”, o que na linguagem das neurociências pode ser uma droga.

Outros concluíram que a mesma inclinação ocorra em função da responsividade de múltiplas áreas cerebrais, incluindo porções do córtex parietal e pré-frontal, tradicionalmente relacionadas a processos cognitivos.

A distinção ocorre porque há dois tipos de experiências em foco. As que são do plano da conexão, transe e entrega e as que são do plano da crença, Deus e comunhão.

A grande diferença está no fato de que aquelas prescindem de imagens mentais ou conceitos para existirem —vide que alguém pode tomar um alucinógeno e ter uma experiência mística— enquanto estas não se sustentam sem algumas certezas, como a de que Deus existe.

Experiência mística ou espiritual e experiência religiosa: duas realidades no domínio do cérebro e da cultura, que volta e meia se combinam.

Um fato curioso sobre os caçadores-coletores é que, apesar de não representarem mais o tipo hegemônico no planeta, persistem aqui e ali, oferecendo uma visão aproximada de certos aspectos nosso passado biocultural, o que não pode ser confundido com a ideia de que deixaram de evoluir ou que não desenvolveram estruturas simbólicas complexas.

Peoples e seus colaboradores mostraram que, numa amostra de 33 grupos de caçadores-coletores, espalhados pelo planeta, 100% são animistas, o que a grosso modo quer dizer que têm algum tipo de relação espiritualizada com o ambiente, enquanto 15% acreditam em um ou mais deuses superpoderosos, onipresentes e oniscientes ou não. Isto se explica porque deuses com características comuns às religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), surgiram em grupos que já haviam se tornado sedentários.

Até pouco tempo atrás, acreditava-se que tal modelo de crenças tivesse sido facilitado pela necessidade de um poder social moralizante, após a descoberta da agricultura, dado que esta trouxe consigo uma horda de aproveitadores (free-riders).

Porém, um artigo publicado na revista Nature (2019) mostrou que deuses todo-poderosos, de perfil moralizante, foram originalmente cultuados em megassociedades de mais de um milhão de pessoas, as quais só surgiram milhares de anos depois da plena difusão da agricultura.

Esta diferença temporal é a melhor medida da diferença entre os dois fenômenos que mencionei: um bastante antigo, não-verbal, que possui alguns paralelos com manifestações existentes em outras espécies (mais para analogia do que para homologia) e outro bem mais recente, relacionado a crenças transmitidas pela linguagem, incluindo a escrita (Bíblia e Alcorão).

O futuro digital da religião, o presente digital da espiritualidade

Muita gente que lamentou a separação dos Beatles em 1970 não soube que isso poderia ter acontecido antes se o grupo não tivesse embarcado numa das viagens mais surreais da sua existência: a ida para Índia (1968), para praticar meditação, sob a orientação de Maharishi Mahesh Yogi, o pai da meditação transcendental.

A experiência não acabou muito bem pois Maharishi foi acusado de tentar abusar de Mia Farrow, amiga dos músicos, mas serviu para popularizar três instituições orientais, que hoje em dia também fazem parte do dia a dia do ocidente: ioga, meditação e gurus.

A modalidade de Maharishi, em particular, foi objeto de centenas de estudos, os quais demonstram que a prática, desenvolvida em grupo, sobre um tablado, faz bem para o corpo e para a mente. Porém, a verdade é que nem sempre achamos que vale a pena fazer aquilo que faz bem. Há casos em que o tempo despendido se reverte em formas muito severas de cobrança; e há outros em que uma pandemia detona a função utilidade das práticas coletivas. Isso sem contar a falta de saco, que vira e mexe dá as caras.

A percepção de que uma parcela enorme da classe média e alta do mundo tem interesse em vivências espirituais levou a uma profusão de aplicativos, que basicamente conduzem seus usuários pelos procedimentos e estágios necessários até a emergência de experiências de conexão, quando estes estão afim. Mais do que um sucesso, tornou-se instituição, tal como Coursera e outras.

Aí veio a pandemia com suas angústias solitárias (sonho em tê-las), que tornaram a prática da meditação quase tão comum quanto a ginástica. Fico imaginando que se pudéssemos colocar um termômetro sob o braço do espírito religioso da humanidade, veríamos o ponteiro pender sutilmente em direção ao seu passado civilizatório.

A tecnologia está claramente a favor da massificação das práticas espirituais, que antecedem as religiões abraâmicas. Mas, afinal, será que estas irão reagir? Será que também irão encontrar formas novas e poderosas para aumentar sua fatia do bolo?

A tese central deste artigo é de que sim e de que isto vai afetar profundamente o futuro da humanidade.

Comecemos pelo básico.

Os últimos anos foram palco de um crescimento assombroso no uso de TikTok, todas elas ganharam inúmeros influencers religiosos, com milhares de seguidores.

Missas e cultos, antes restritos à tevê, agora são apresentados ao vivo no Zoom, para gerar mais engajamento; soluções para a captação remota de recursos, ajudam a manter a roda girando. Enfim, este é um setor que parece prosperar, a despeito da queda do público presencial, que em parte já voltou.

Porém, há um contraponto: os jovens das economias mais desenvolvidas estão perdendo a fé em massa e isto pode estar puxando a popularidade geral das religiões abraâmicas para baixo.

Ronald Inglehart, da Universidade de Michigan, conduziu uma pesquisa em 43 países, a qual deu origem a um livro (“A queda súbita das religiões: o que causa e o que virá depois”), que ainda não está nas livrarias, mas que trará a seguinte passagem: “de 2007 a 2020, a vasta maioria dos países (43 de 49) tornou-se menos religiosa. Este declínio é mais forte em países mais ricos, mas é evidente ao redor de todo o mundo” (Inglehart, 2021).

Ele não está falando sozinho. Em 2019, a mídia americana deu bastante publicidade ao resultado de uma conhecida pesquisa (General Social Survey) que mostrou que, pela primeira na história, a opção “sem religião específica” aparece no topo das preferências religiosas dos americanos (23.1%), junto com católicos (23%) e evangélicos (22.5%).

Já em 2018, pesquisa semelhante do Instituto Gallup apontou que “a porcentagem de millennials que não tem religião continua a subir e em torno de 33% destes declaram não ter religião. Não apenas os millennials têm menos chance de terem uma religião, como os que são religiosos têm menos chance de pertencerem a uma igreja ou congregação. 57% dos millennials religiosos pertencem a uma igreja ou congregação, comparado com 65% das gerações mais velhas”.

Há dúvidas sobre o quanto estes dados são realmente confiáveis, dadas as dificuldades para se medir algo que ocorre em escala global.

Em contraste com os mesmos, nos Estados Unidos, o declínio do cristianismo segue a passos acelerados” (2019).

Sendo este um fenômeno isolado do cristianismo, algo restrito às economias mais avançadas, ou algo maior, fato é que não me parece o tipo de coisa que os principais interessados no assunto (via de regra: aqueles que vivem da religião) deixarão de lado. Porém, como proceder?

Bom, a resposta passa por um ponto delicado. Aplicativos de meditação e vivências espirituais (fique à vontade para chamá-las como preferir) funcionam justamente por abolirem a fricção. Millennials não querem ter religião e, quando querem, não querem participar de “uma igreja ou congregação” pela mesma razão que eu não faço meditação: falta de saco.

Não adianta promover missas e cultos pelo Zoom. O setor só vai voltar a prosperar globalmente se vencer o problema da falta de saco dos millennials e, ainda mais, das gerações subsequentes.

Não sei se deveria compartilhar isso, mas, vamos lá: trata-se de falta de saco para ações síncronas. O que o jovem não quer é, justamente, essa coisa que parece tão avançada, do padre ou pastor, num determinado horário, clamando a todos que participem de uma experiência coletiva. Nesta hora —qualquer que seja— há certamente algo mais interessante para fazer. Pode apostar nisso.

O grande porém é que estas experiências coletivas são essenciais para manter a base aderente. Como ouvi certa vez o filósofo Daniel Dennett dizer, essa parte serve para criar a metacrença, que é uma espécie de jogo mental em que eu considero saber que você sabe que eu sei que você sabe que nós acreditamos na mesma coisa, isto é, num mesmo Deus, cuja graça recai sobre este grupo.

Porém, quando Dennett deu essa palestra, há uns quatro ou cinco anos, o mundo era outro, a inteligência artificial era outra e os assistentes virtuais também. Não existia GPT-3 e passar no Teste de Turing ainda era um objetivo distante para os algoritmos de linguagem.

Mas aí o mundo mudou e a gente viu que empoderar algoritmos para conversar de maneira estruturada depende apenas de um caminhão de dinheiro para despejar no seu treinamento. Em paralelo, vimos que as pessoas têm bem menos resistência a interagir verbalmente com máquinas do que um dia se imaginou.

Os novos assistentes virtuais me dão a certeza de que será uma questão de tempo até que sejam inventados módulos doutrinários, que os pais, instruídos por suas igrejas, escolherão para habitar os celulares e vestíveis dos seus filhos —e os próprios.

De início, nada irá acontecer. O algoritmo não dará um pio e ninguém dirá que é diferente da Siri. Sua vantagem irá residir exatamente nisso: na capacidade de não quebrar o fluxo da vida cotidiana do jovem, que animadamente circula entre um jogo e um papo rápido com amigos, numa rede social que acabou de surgir.

Porém, eis que uma hora o assistente virtual será interpelado e irá responder. Pelo rastreamento ocular, a câmera frontal do celular irá reconhecer a emoção dominante —nada de novo nisso. Em função dela, oferecerá um conselho, um afago e até um braço amigo, na medida.

E este braço vai crescer mais forte do que qualquer relação presencial conhecida, ditando o futuro da religião, na contramão das previsões que estão por aí.

Nova paisagem ideológica do planeta

Assistentes virtuais católicos, evangélicos, judaicos, islâmicos, com trinta conduções doutrinárias diferentes. Qualquer que seja a preferência do freguês, sempre haverá um assistente virtual doutrinário pronto para lhe atender e, sobretudo, atender seus filhos, que por alguma razão misteriosa não parecem muito interessados no assunto.

É claro que a moda não irá parar aí. Sua generalização deverá levar a uma inundação de assistentes de voz especializados em filosofia, política, psicologia, disponibilizados em nuvem e aprimorados continuamente pelo uso.

Você quer ser hegeliano, ótimo. Quer ser um cético pirrônico? Tem também. Pensar como um economista? Sim, por que não? Escola austríaca? Aí vai. Ideologia bolchevique? Claro. Nazista? Não, nazista, não. Será proibido. Poucas serão as proibições.

A popularização dos assistentes virtuais doutrinários deverá alterar a formação de crenças sem muito alarde, dada sua capacidade de habitar a infraestrutura lógica de celulares e vestíveis. Marcas de roupas farão parcerias religiosas, empresas de software também. Servidores religiosos serão minerados para a identificação de tendências e produção de insights. Atacá-los será a estratégia do Anonymous, toda vez que precisar provar que não desapareceu.

Fiéis gerarão analytics. Analytics gerarão expectativas de conversão. Estas por sua vez guiarão a indústria de vestíveis, aplicativos e algoritmos, sob os princípios da economia de escala. O broadcasting religioso abandonará o modelo Edir Macedo e adotará o modelo Jeff Bezos .

Dízimos farão parte da economia das assinaturas. Vestíveis e celulares com programas doutrinários servirão de prêmio e de brinde. Expressões como assistente de Deus, pastor digital, missa assíncrona, preach-to-text (PtT) e preach-to-voice (PtV) serão inventadas e irão se tornar corriqueiras.

Muita coisa vai mudar. E muita gente não vai perceber.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/alvaro-machado-dias/2021/01/06/minha-hipotese-sobre-o-futuro-das-religioes.htm