Brainstorming morreu por causa do trabalho remoto e não vai fazer falta

Álvaro Machado Dias

Álvaro Machado Dias é neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica “Frontiers in Neuroscience”, membro da Behavioral Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: [email protected]

22/03/2021 04h00

Quase tudo piorou com a pandemia, mas nem por isso devemos perder a esperança de que dias melhores virão. Não digo melhores do que os atuais; isto é fácil, especialmente no Brasil. Eu falo de dias em que teremos realizado o luto desta situação catastrófica e refinada no fel como um todo e poderemos olhar para os aprendizados que ficaram, entre traumas físicos e mentais.

Consideremos o trabalho, por exemplo. Definitivamente, sua versão remota não é intrinsecamente melhor do que a presencial. Na realidade, ela é sequer praticável para a maioria dos brasileiros. Por outro lado, formas híbridas e extirpadas dos vícios impostos pela facilidade de juntar o povo do setor numa mesma sala irão tornar a vida melhor. Nessa hora, sorria para a câmera, abra um champanhe e faça um brinde pela extinção dos brainstormings. Que alívio!

O brainstorming é fruto de concepções sobre o inconsciente humano como motor da produção intelectual de qualidade.

Tudo começou perto do fim do século 19, quando Freud fez uma descoberta ímpar: basta que alguém fale sem filtro ou juízo, para que deixe escapar, entre ruídos do acaso, ideias cifradas, mas profundas, sobre seus desejos inconfessáveis e fantasias. Isso ficou conhecido como associação livre. Foi ela que inaugurou a era de se passar a perna no retrato empedernido do Eu, também chamado de caretice, a qual sabidamente tolhe a criatividade.

A técnica da associação livre gerou frutos em pencas, sendo alguns focados no aprofundamento do método e outros na translação para diferentes universos.

Uma das adaptações envolve uma inversão no objeto de interesse primário, que deixa de ser a pessoa, cujos desejos precisam ser tirados na marra do armário, para se tornar o desafio ou problema que precisa de uma solução relevante em termos práticos, a qual não pode ser alcançada de maneira burocrática, já que não é óbvia. Aí surgiu a ideia de fazer associação livre em grupo para ver se, balançando muitas árvores, como numa tempestade, cai algum fruto aproveitável.

O brainstorming é a fórmula moderna para se encarar problemas que não são fáceis, zapeando pelo palácio de corredores infinitos da mente. Seria um magnífico caso de expansão conceitual aplicada, não fosse o brainstorming a típica adaptação baseada nas premissas erradas.

Especificamente, há um problema na relação estabelecida entre o que se quer e o como se busca.

Explico.

O que faz a associação livre eficiente é o fato de que nem liberdade, nem acaso têm existências próprias relevantes, frente aos imãs dos desejos inconscientes.

Aliás, sequer é preciso falar em desejo para tanto. Peça para alguém fazer qualquer coisa de maneira aleatória e assista ao padrão se formando.

É na gaiola do padrão que canta o pássaro do desejo; é na repetição e no deslize que se mostra sua verdade. Pudéssemos mesmo associar ideias livremente, jamais teria surgido a psicanálise.

Tá aí o equívoco do brainstorming: pessoas se juntam para solução de problemas, como numa sessão coletiva de terapia, e aquilo que lhes veem à mente se reduz a expressões cifradas de seus anseios. Não poderia ser diferente, já que o aleatório puxa a pessoa para seus padrões, como os ventos caóticos de um tufão, puxando as coisas para o seu centro.

O resultado é dado na impertinência aplicada da maior parte das ideias produzidas. O que não indica ausência de criatividade em cada um dos participantes. É só que: grupo reage, pessoa, cria.

O psicanalista é o especialista em identificar desejos entre os ruídos, ao passo que a solução criativa de problemas práticos precisa de conexão direta com seu intento. Neste caso, como dizia Mallarmé, a arte está nas recusas, na inibição do jorro fácil —pois é da inibição do impulso que se ascende à relevância aplicada, que é o que demanda a situação em que o brainstorming é usado de açoite.

Brainstorming é elegia das primeiras ideias, solução criativa de problemas é a arte de não levá-las a sério, de se desapegar da sacada fácil que dança no seu reflexo, em prol das que cumprem seu papel e depois repousam sobre ele.

No mundo de hoje, sexy é ser sem esforço, o que não passa de um tremendo equívoco, já que ninguém se torna criador só porque repete o mantra de que todo mundo é criativo.

Melhor faz aquele que segue à moda antiga, lapidando ideias com o facão irrequieto, enquanto se indaga se a solução produzida é o máximo entre os mínimos possíveis. Se todo cacoete foi devidamente limado, como na radiografia de um copo de água e no canavial de João Cabral de Melo Neto, o maior entre os especialistas em ideias precisas e essenciais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/alvaro-machado-dias/2021/03/22/quase-tudo-e-muito-ruim-mas-pelo-menos-nos-livramos-do-brainstorming.htm