Automóvel e hiperinflação: entre sustos e soluços

Carro, Micro  Macro

Carro, Micro  Macro

O risco de descontrole dos preços pode levar o Brasil de volta a um período de dificuldades

Duas notícias motivaram esta matéria: a aprovação, pelo Senado, da independência do Banco Central e a ameaça feita pelo ministro da Economia acerca do risco de hiperinflação, caso as tais reformas não sejam feitas.

Acredito que a maioria dos leitores nunca viveu na hiperinflação, como houve no Brasil até 1994. É o inferno na Terra. Imagine receber o salário no dia 1º. e ter de sair correndo a fazer as compras no supermercado porque, no dia seguinte, já não se comprariam as mesmas coisas — ou se aceitaria menor quantidade ou pior qualidade. As filas no caixa eram enormes, muitas vezes, chegando ao meio da loja, tanto que se punham as coisas no carrinho já estando nelas. Tudo ao som do clac-clac das máquinas de remarcação.

Investia-se no Brasil? Não. Para se proteger, os fabricantes faziam com que suas filiais contraíssem empréstimos junto às matrizes, o que compunha grande parte da dívida pública

As mercadorias eram etiquetadas uma a uma com etiquetas picotadas, para impedir que o consumidor substituísse por outra de menor valor. Códigos de barras, embora existissem, não eram usados e os caixas tinham de digitar o preço dos itens um a um. Cartão de crédito? Nem pensar. Quando se aceitava, já trazia um valor bem mais alto. Um congelador igual ou maior que a geladeira era o sonho de consumo de todas as famílias. Carros só eram vendidos até o dia 5 de cada mês. Daí para a frente, só no mês seguinte, já com o novo preço, de 10 a 15 por cento maior. O prazo máximo de pagamento para um carro novo era de seis meses.

Investia-se no Brasil? Não. Para se proteger, as empresas — em especial os fabricantes de automóveis — faziam com que suas filiais contraíssem empréstimos junto às matrizes, com aval de nosso Estado. Isso compunha grande parte da dívida pública, haja vista que o pagamento do principal e dos juros dependia de câmbio centralizado e administrado pelo Banco Central. O mecanismo não é óbvio.

A empresa “X” tomava um empréstimo na matriz para construir uma nova fábrica ou para lançar um novo modelo. Esses recursos eram, de fato, comprados pelo Banco Central, que entregava moeda local ao investidor. Ocorre que dinheiro não tem carimbo e, como o país fosse carente de divisas, esses dólares eram consumidos comprando petróleo, entre outros itens. Na prática, a maior parte desses recursos vinha como maquinário ou prestação de serviços, somente uns trocados vinham em dinheiro. Por causa disso, o País como um todo não tinha numerário para honrar seus compromissos externos, contraindo mais dívidas para se manter funcionando.

Isso atrapalhou o lançamento de novos veículos no Brasil? Sim e não. Os projetos definidos antes da moratória de setembro de 1982 vieram a ser produzidos, como o Chevrolet Monza, o Volkswagen Santana e o Fiat Uno, relativamente atualizados com os similares europeus. Dali tivemos um hiato de cinco anos até 1989, quando a Chevrolet lançou o Kadett e a Volkswagen introduziu a injeção eletrônica no Gol GTI.

Exportação incentivada

Ao mesmo tempo, davam-se todos os tipos de incentivos à exportação para fazer caixa em dólar, o que é contradição ainda maior: sendo os modelos produzidos aqui defasados, para serem aceitos no resto do mundo, demandavam grandes alterações.

Foram os casos do Chevrolet Chevette, que recebia motor diferente; do VW Voyage, extensamente modificado para ser vendido nos Estados Unidos e no Canadá como Fox; e do Fiat Uno, que seguia para a Itália sem motor e transmissão e podia até ganhar caixa de variação contínua (CVT). Em alguns casos, equipamentos eram colocados em regime de draw-back, importação exclusiva para atender exportações, como o sistema de injeção do Fox citado.

Muitos carros estudados para o Brasil não chegaram, como o Ford Sierra (muito mais moderno que o Del Rey) e o Fiat Regata, ambos disponíveis na Argentina, e a vinda do Chevrolet Corsa levou uma década a mais que o previsto.

Por serem duráveis ou por serem símbolo de riqueza, carros passaram a ser encarados como investimento, mesmo que em moeda forte se desvalorizassem ao sair da loja

Economia e Filosofia caminham juntas, apesar de muitos profissionais não entenderem assim. O melhor exemplo dessa parceria é o conceito de moeda. Pode-se dizer que, para funcionar como tal, ela precisa ser divisível, ser aceita como meio de troca e ser efetiva como reserva de valor. Isso não representa o conceito, somente as características. Por conceito, a moeda é intrinsecamente uma confissão de dívida do Estado para com o cidadão. Durante a vigência do padrão-ouro, as notas costumavam ter impresso: “Pague-se, por meio desta, X g de ouro”.

As pessoas criam que o Estado pagaria mesmo e a moeda passava a ter, além do curso legal, o curso livre: havia expectativa real de poder ir ao Tesouro e trocar o papel pelo metal. Findo o padrão-ouro em 1971, a moeda passou a valer pela expectativa de o país ser capaz de pagar suas dívidas prestando serviços à sociedade. Quanto maior a credibilidade, maior o valor da moeda. A inflação reduz essa expectativa ao longo do tempo, ou seja, não se crê que o Estado cumpra seus compromissos num prazo inversamente proporcional a taxa de inflação. Se a moeda deixar de ser aceita fora do país de origem, significa que a credibilidade é nula.

Por causa disso, seja por serem duráveis, seja por serem símbolo de riqueza, carros passaram a ser encarados como investimento durante os tempos de hiperinflação. Não importava muito se, em moeda forte, o carro se desvalorizasse assim que pusesse a primeira roda para fora da concessionária. A ilusão de que se valorizaria nominalmente superava de longe a racionalidade.

Cabe ao Banco Central zelar pela perenidade da moeda local, primariamente como reserva de valor, e é por isso que se o pretende tornar independente. Ao mesmo tempo, o risco — real ou imaginário — de hiperinflação deriva para outros bens o papel de reserva de valor, enfraquecendo o próprio Banco Central como defensor do meio circulante. Resta saber se, ocorrendo tamanha catástrofe, o automóvel recuperaria o papel de reserva de valor que a estabilidade da moeda lhe retirou.

Uma coisa é certa: seja pelo grau de internacionalização de nossa economia, seja pelo fato de o mundo ter ficado muito pequeno, exportar não é solução e as empresas terão de lidar com a falta de crédito que acompanha os eventos mais adversos. Como é a credibilidade do Brasil como nação que está em jogo, há de ser o investimento a primeira variável a sofrer. A tendência ao monopólio como meio de proteção poderá reduzir em muito nosso portfólio de veículos. Ponhamos as barbas de molho.

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A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars

Fonte: https://bestcars.uol.com.br/bc/informe-se/colunas/destaques-colunas/mercado-de-automoveis-entre-sustos-e-solucos/