A vida é sofrência? Como a sensação de vazio transformou a geração digital

Christian Dunker

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)… além de youtuber.

08/01/2021 04h00

Há muitas maneiras de ler transformações sociais que se enfatize os grandes monumentos biográficos, culturais ou jurídicos, as mutações no processo produtivo ou as mudanças em termos de diversidade de valores ou reconhecimento de hábitos.

Uma abordagem crítica deve compreender tanto estruturas simbólicas, quanto a ação social ou ainda a funcionalidade institucional.

Na perspectiva do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP entendemos que a leitura crítica de processos transformativos se beneficia do conceito de forma de vida, entendido como solução para conflitos postos, em termos de linguagem, trabalho e desejo [1].

Uma forma de vida não se define apenas pela sua permanência e reprodução como sistema de autorregulação e relação com o mundo, mas pela maneira como ela lida com os padrões de diversidade que ela mesma produz [2].

Descrever uma forma de vida é reconstituir sua gramática de reconhecimento, a forma específica de produção e reprodução de valor, assim como as modalidades de circulação de desejos. Por isso uma forma de vida não tem uma identidade em seu centro, que a definiria como expansão ou realização de sua essência, mas ela deve ser examinada a partir de suas transições ou passagens, de como ela lida com as variedades que ela mesma produziu.

A melhor imagem para representar uma forma de vida não é um circulo com um ponto no meio, mas uma elipse com dois focos que se alternam, como nas órbitas dos planetas. O centro de uma forma de vida será mais provavelmente vazio.

Daí que nosso método compreenda a análise desta experiência de vazio, como modalidades de mal-estar, envolve o exame da sucessão histórica das patologias do social, entendidas como formas de sofrimento entranhadas aos sintomas.

Para a psicanálise, os sintomas não são apenas acréscimos indesejáveis que devem ser retirados para aumentar a funcionalidade e eficácia de uma forma de vida.

Nos sintomas está contida uma espécie de resistência social, uma palavra que não pode ser dita nem escutada por outras vias, um fragmento de verdade que o sistema que envolve aquela forma de vida, e muitas vezes ela própria não pode reconhecer.

Descrever mudanças em modalidades de sofrimento, com seus afetos dominantes e como suas narrativas de referência torna-se assim um método para fazer uma leitura social crítica.

Perda de experiência

Costuma-se descreve os nativos digitais, nascidos após 1995, como uma geração orientada para o compartilhamento, com aversão relativa pelas gramáticas institucionais construídas para o mundo do trabalho, do desejo e da linguagem.

Observemos que estes foram as três ondas que redefiniram sucessivamente a forma de vida digital.

No início tratava-se de uma nova forma de linguagem, de importância estratégica para a pesquisa científica e para a comunicação militar. É o tempo dos grandes projetos de digitalização do patrimônio cultural, depositados em bibliotecas e museus.

Depois vieram as gramáticas desejantes, trazendo consigo novas configurações de erotismo, de agrupamento e de compartilhamento de experiências em rede. É o momento da emergência das redes sociais e dos dispositivos de compartilhamento de imagens e narrativas pessoais.

Em seguida chegamos ao tempo no qual a economia produtiva e o consumo passam a realmente se integrar a esta forma de vida, tornando massivo o trabalho à distância ou intermitente por meio de aplicativos laborais.

O impacto desta experiência global no Brasil deve ser ponderado contra dois outros processos decisivos. A digitalização se fez acompanhar da efetivação de programas de governo (Fernando Henrique Cardoso e Lula – Dilma Rousseff) que ampliaram muito a mobilidade social, a disponibilidade de acesso a bens simbólicos, ainda que com baixa redução da desigualdade social.

O Brasil tornou-se permeável, cultural e economicamente, a um novo tipo de relação com o mundo e consigo mesmo. A cultura do autoempreendedor, expressão da progressão neoliberal, cresceu paradoxalmente ao lado do incremento de políticas estatais de inclusão, de combate a fome e de securidade social.

A chamada orientação para o consumo das famílias, ainda que vulnerável do ponto de vista da sua continuidade produziu um novo e inédito acesso a modalidades de consumo, de bens materiais e simbólicos, para muitos novos habitantes de novas posições sociais. A ralé deixa a miséria e torna-se pobre, os pobres tornam-se classe trabalhadora e os ricos tornam-se muito mais ricos, resultando em pequena redução da desigualdade e confirmação do patrimonialismo [3].

O segundo processo contemporâneo da emergência da forma de vida digital é de natureza institucional.

Até os anos 2000 o Brasil havia desenvolvido uma forma de vida ligada baseada na invisibilização de populações crescentemente sentidas como perigosas e no confinamento em espaços de moradia seletiva ou de circulação restrita. Muros, simbólicos e de concreto, guarneciam a diversidade fortalecendo padrões de classe, raça e gênero ligados a modalidades de consumo conspícuo, ligados a uma personalidade sensível [4], regulados por um novo tipo de administração de normas e regulamentos, cuja figura de autoridade é o gestor ou síndico.

O condomínio residencial, mas também o shopping center, assim como as favelas e as prisões definiram uma forma de vida onde a identidade por um lado e o medo social da diferença, por outro, criavam uma nova maneira de lidar com a aparência.

Para as classes baixas emergentes o consumo de produtos de beleza, a frequência a cursos de línguas ou o acesso a academias de ginástica, faz acompanhar de um ingresso acessível ao ensino universitário, ainda que de qualidade discutível.

Estes três processos: a acessibilidade digital, que reconecta discursivamente famílias antes separadas pela distância física, que cria uma geração com novos padrões relacionais, o empreendedorismo combinado com suporte social e a vida em forma de condomínio, combinados ente si acabam por estabelecer uma mutação em nossas formas hegemônicas de sofrimento.

O epicentro desta mudança pode ser atribuído a uma experiência problemática da nova identidade adquirida, ou da antiga identidade ameaçada. Por isso podemos dizer que o diagnóstico transversal para esta mudança acusa um sentimento comum de que certa experiência foi perdida, que ingressamos em um novo mundo que sentimos como inautêntico, postiço e decepcionante em relação ao mundo que nos foi prometido.

Isso pode ser atribuído à perda da unidade de nossa experiência social e subjetiva.

O estado de segregação bem definido traz sofrimento, mas este vem acompanhado de narrativas de consolação que confirmam a impossibilidade de transformação.

O mal-estar pode ser grande e aflitivo, mas ele não demanda mudança uma vez que as identidades estão muito bem confirmadas em seus lugares. Estes lugares duplicam e confirmam-se no universo institucional que acaba encarregando-se de reproduzí-los.

Desta maneira muros e condomínios definiam um Brasil marcado pela figura do cartório, da ação entre amigos, dos favorecimentos ou da instrumentalização e seletividade na aplicação da lei ou na definição de políticas públicas.

Observe-se que este diagnóstico aflige primariamente agrupamentos minoritários, que assiste a emergência de novas formas de religiosidade, como a teologia da prosperidade, quanto expressões artísticas como o funk e o hip-hop, identificações de gênero, como os coletivos feministas e os coletivos ligados a raça e etnia.

O sofrimento de gênero, o sofrimento de raça, o sofrimento com o corpo, torna-se visível redefinindo assim novas gramáticas para a identidade.

Também entre os mais ricos a função distintiva do consumo parece alcançar um certo paroxismo. Identidades definidas pelo consumo alimentar, pela mobilidade, pela qualificação exclusiva do consumo tornam-se mais e mais importantes.

A linguagem digital facultou ainda um fenômeno novo: a junção de microminorias, antes silenciadas pela ocupação institucional do espaço público, dá voz e expressão a ideias extremas, tanto em sentido progressista quanto conservador.

A isso acrescente-se o fato de que para uma enorme parcela de novos habitantes da democracia digital, a prática de opinar e discutir com pessoas que têm posições diferentes é abissalmente nova. Neste espaço ter uma opinião é candidatar-se a uma experiência de reconhecimento, ter uma opinião confirmada, legitimada ou apoiada é acumular capital cultural e capital social.

Ter sua expressão moral, estética ou política desconfirmada é, inversamente, deparar-se com o temor de um retorno a invisibilidade.

Uma decepção que confirma e redobra a decepção de base com a realização de que a nova posição de base só aumenta o tamanho do mundo, sem reduzir o volume ocupado pelo eu. Esta deflação imaginária, às vezes tornadas ainda mais dolorosas, pelos contraexemplos de celebrização e sucesso digital, é uma fonte permanente e explosiva para o sofrimento de identidade. Este processo que se faz acompanhar pela mutação de nossos afetos políticos hegemônicos, do medo e da inveja para o ódio e o ressentimento.

Mas não devemos reduzir a deflação-inflação imaginária a um fenômeno narcísico que passará com a estagnação do público ou com o cansaço criado por padrões miméticos de falso reconhecimento. Há uma mutação simbólica importante que se infiltra neste ponto. Ela altera nosso sentimento e nossa interpretação do que significa possuir algo e consequentemente trocar algo.

No nosso possessivismo condominial, a posse é ostentação e a legitimidade é a força de lei que individualiza o portador de atributos. Sua essência dependerá dos padrões de transmissão, por exemplo, a herança, a proteção ou o empréstimo condicional.

Este modo de sentir algo como seu, ainda que este algo seja sua imagem, suas palavras, os seus gestos, é modificado profundamente por uma experiência que repudia crescentemente a acumulação como patrimônio.

Compartilhar, usar ou fruir são modos de apossamento que não trazem consigo o sofrimento associado com o patrimonialismo condominial. Ou seja, quando construo uma forma de vida ao modo de um monumento, com traços fixos e alto grau de apossamento, eu ao mesmo tempo me fixo a este padrão de apresentação e consequentemente a forma como sou visto pelos outros, e portanto, ao tipo de outro e a gramática de reconhecimento que assumimos como lei para nossas trocas desejantes.

Esta fixação é sentida crescentemente como problemática. Portanto, na media que a identidade pode ser facilmente alterada, por meio de procedimentos de manipulação cirúrgica (pensemos aqui em intervenções bariátricas, próteses, implantes, mas também tatuagens e redesignações de gênero), química (pensemos aqui nas manipulações farmacológicas, legais e ilegais, de nosso ambiente psíquico) e digital (pensemos aqui nos perfis falsos, pseudônimos, avatares múltiplos), não conseguir realizar esta manipulação torna-se um problema de grandes proporções.

Encontrar algum tipo de resistência ou de objeção ao princípio de que não se deve ter uma posição fixa e determinada, torna-se assim fonte de sofrimento. Por outro lado, a mutação constante e sem horizonte de conclusão entre as mais diversas modalidades de apresentação de si é também fonte de sofrimento. A máscara social do papel que devemos representar torna-se uma máscara de ferro que se infiltra em nossa face impedindo a revelação da carne que a subjaz.

Excesso de experiências improdutivas de determinação

Uma forma de descrever este paradoxo na transformação de nossas formas de sofrer é dizer que passamos de uma situação onde atribuímos e narrávamos nosso sofrimento segundo a hipótese de que ele é causado pelo excesso de experiências improdutivas de determinação.

Ou seja, sofremos porque nossa identidade está demasiadamente regulada por experiência de determinação, ligadas à nossa origem familiar, a nossa formação cultural, aos nossos horizontes de satisfação e de identidade de gênero. Pode-se dizer que isso cria uma grande metáfora da fluidez ou da vida em estado líquido [5], vale dizer, sem forma determinada.

Esta é a maneira tipicamente liberal de retratar o sofrimento. Ele é um obstáculo, um problema para nossa produtividade no trabalho. Aquele que adoece deve ser cuidado para retornar mais cedo possível para sua posição laboral. Aquele que possui desvantagens debilitantes ou vulnerabilidades sociais deve ser apoiado de tal forma a encontrar sua posição de equidade e competitividade. As desvantagens históricas devem ser compensadas por políticas compensatórias.

Neste sentido, o sofrimento é uma parte negativa de nossa identidade, que deve ser encarado como parte do obstáculo a ser superado para nos tornarmos o que somos.

Sofremos com o excesso de normas, de regras, de restrições que impedem a realização de nosso potencial desejante, expressivo e laboral.

Tais regulações foram introduzidas para assegurar um ambiente de equidade e justiça, no entanto, passam a ser percebidas como um excesso, como uma limitação ao livre mercado, à livre expressão de si e ao livre exercício do desejo.

A retórica do excesso torna-se assim um consenso diagnóstico. Trabalhamos demais, poluímos demais, consumimos demais, esperamos demais de nossos ideais, aceleramos nossas expectativas de desempenho a níveis inumanos.

É nesta paisagem que a depressão torna-se uma epidemia mundial. A segunda maior causa de afastamento do trabalho em menos de dez anos, a fonte e origem da epidemia de suicídios no trabalho e entre jovens. A depressão é o sintoma que denuncia uma espécie de resistência a uma forma de vida baseada na intensificação da produção [6].

No entanto, a experiência que envolve este excesso de produção é sentida, ela mesma como improdutiva. Uma vida baseada em métricas e resultados tende a menosprezar os processos e os caminhos pelas quais ela se realiza.

Os meios que tornam uma vida feliz são os obstáculos que ela enfrenta e resolve, os conflitos que ela incorpora, as histórias que ela torna possíveis de serem contadas.

A contradição, neste caso, é que uma vida baseada no excesso de produção e de resultados aparece, retrospectivamente, para seus atores e agentes, como desinteressante.

Se o último capítulo é tudo o que vale, temos apenas uma história mais curta para contar e ela mesma torna-se reciclável e efêmera. Isso torna epidêmico o tédio, a apatia e o sentimento de irrelevância.

Se tudo o que importa são os resultados, nossa gramática de reconhecimento acentua o fato de que somos substituíveis. Somos trocáveis por outrem que desempenhará, necessariamente, nosso papel de maneira mais eficaz e mais produtiva, em termos de acumulação de valor. No entanto, para aquele que se sente reciclado por gerações mais jovens que desempenham melhor e mais rápido o seu papel, o sentimento de que sofremos com o excesso de experiências improdutivas de determinação será tônico.

Identidades que devemos se acostumar à flexibilidade desejante, discursiva e laboral tendem a sofrer com o sentimento de esvaziamento de si.

Aderidas a uma gramática que valoriza, sobretudo, a distinção e a singularidade, elas tendem a não perceber o vazio relacional e o decréscimo de relações orgânicas coletivas com um problema. No entanto, quando desviam-se da rota de aceleração narcísica resta-lhes a experiência de solidão e o déficit de intimidade [7].

A disciplina, o método de vida, a ordem escolhida para alcançar o sucesso torna-se agora uma camisa de força que leva o cavaleiro a reconhecer-se como uma armadura vazia. Construindo um laço de fidelidade com a empresa na qual trabalha ele se sentirá traído quando esta o despende por contingências alheias ao seu desempenho individual.

Do ponto de vista do consumo este sujeito se orientará menos para a aquisição de objetos que são distintivos de sua posição social ou de sua fidelidade institucional e mais para a acumulação do que pode ser um antídoto ao seu sentimento de falta de propósito e de errância.

Por isso as narrativas de marketing orientam-se para a valorização do consumo como experiência, como entrada em um mundo de acesso restrito, como produção de uma diferença relevante e autêntica do que para a mera consumação de uma diferença social marcada pela classe.

Contudo, ainda assim, a gramática de produção e de reconhecimento desta forma de subjetividade, característica das gerações nascidas antes de 1995, está orientada pela experiência simbólica da determinação.

A força de vontade, a orientação para a realização dos desejos e a retórica do triunfo baseia-se no enigma sobre a quantidade e a qualidade da determinação necessária para realizar objetivos, sonhos e desejos. Daí que a terapêutica fundamental esteja ligada à recuperação de determinação simbólica de nossos ideais, a restauração de nossa ligação com uma história que confere relevância e pertinência ao nosso desejo.

Déficit de experiências produtivas de indeterminação

A transição fundamental, em curso na geração Z, representada pelos nativos digitais, está ligada a um certo esgotamento desta maneira hegemônica de interpretar o sofrimento e de produzir experiências de felicidade.

O investimento determinado e contínuo em uma carreira, uma profissão, um ciclo de estudos não está mais seguramente garantido por uma posição final e segurança ou de realização.

A ideia básica de que a determinação é a chave da realização de si é posta em questão uma vez que existem outras contingências, que ultrapassam o esforço individual que parecem cada vez mais claras aos participantes do jogo social.

Atividades inteiras como a fotografia e a publicidade, assim como o operariado qualificado, como um torneiro mecânico ou um fresador, desaparecem. Carreiras muito bem planejadas são interrompidas por uma modificação no planejamento global de uma empresa, implicando, por exemplo, o transporte de uma planta de produção para uma região remota da Ásia ou a mera desativação do negócio face à financeirização da produção.

Na medida que as empresas não conseguem manter seu compromisso de fidelidade e segurança, baseada na contrapartida da excelência, os empregados começam a responder com uma atitude predatória.

Os altos salários começam a ser ponderados contra melhores condições de trabalho.

O ambiente de lazer e a flexibilidade tornam-se atrativos tão ou mais importante na medida em que a remuneração deixa de ser um diferenciador claro e distinto.

O sistema de bônus por produtividade, com suas obscuridades e contingências, começa a nublar a perspectiva que equilibra sacrifícios com vantagens.

As vagas para empregos mais qualificados começam a depender cada vez mais de indicações, networking e de afinidades subjetivas, tornando a equação do sacrifício em relação ao valor do amanhã ainda mais incerta [8].

Diz-se que isto faz a função do superego, esta instância psíquica descrita por Freud como interiorização de regras e relações de autoridade, deixe de ser proibitiva e passe a ser prescritiva. Isso equivale a uma mudança de nossos ideais de realização da vertente da proibição, com relação ao prazer excessivo, para a prescrição do prazer adequado e intensificado.

No Brasil, o impacto desta indeterminação generalizada parece ter sido traduzido em termos de uma insatisfação com o cenário de mobilidade social e de corrupção institucional. Começa a ficar transparente que uma parte desta indeterminação e insegurança sistêmica decorre da relação problemática entre público e privado, entre Estado e mercado.

Em meio a uma crise do sistema de determinações simbólicas a identidade assume uma função compensatória. Tudo se passa como se na impossibilidade de prever ou de coordenar as modificações contingentes de minhas formas de linguagem, desejo e trabalho devo cultivar, como valor fundamental, uma identidade fluída.

Estar preparado para reiniciar a carreira ou para recomeçar casamentos duas ou três vezes ao longo da vida, torna-se uma perspectiva realista em meio a um cenário de aparições e desaparições de atividades profissionais e nichos de realização profissional provisórios.

Também as relações desejantes devem acontecer no interior de uma espécie de bolha temporal na qual compromissos muito longos tornam-se problemáticos. A narrativa amorosa encurta-se deixando de expressar-se sob a forma de um longo romance como muitas viradas e obstáculos e passa a se apresentar como uma sequência de pequenos contos desconexos e não necessariamente ordenados.

Grandes narrativas de sofrimento, que ligam nossa infância com o complexo sistema de transmissão simbólico familiar, como as que se expressam pelo conceito de neurose, são substituídas por sintomas específicos e relativamente desconexos entre si: depressão, pânico, anorexia, déficit de atenção, cutting, bipolaridade, adições. O fato de que tais transtornos aconteçam simultaneamente em uma mesma pessoa não é remetido à hipótese de que eles tenham uma causa comum, ou uma razão conexa entre si.

Encurtamento de narrativas, no amor, no trabalho e no discurso já foi considerado um dos traços distintivos da cultura pós-moderna. Assim também a congruência entre estilos e formas plásticas deixa de ser submetido a uma sequência definida podendo ocorrer em copresença.

Identidades fluidas são compatíveis com uma exigência mais geral de indeterminação. Contudo a indeterminação pode assumir várias faces: a do futuro aberto e não delimitado, livre, portanto, mas também do futuro incerto e sem previsibilidade, perigoso, portanto.

Torna-se uma questão crucial para um mundo que suspende a relação entre meios e fins e entre sujeitos e alteridades constitutivas, saber quais são as indeterminações produtivas, que criam novas formas de vida singulares e autorrealizadoras, e quais são as modalidades de indeterminação que são improdutivas, que geram apenas errância e incerteza sem acumular experiência ou valor para o conjunto de uma forma de vida.

Muitas experiências de indeterminação são oferecidas, em formatos os mais variados: mais de 70 tipos de gêneros, inclusive o “não gênero”, experiências psicodélica são revividas dos anos 1960, tipos regressivos como hipsters [9], indies [10], agro boys [11], veganos [12], alternas [13], playbas [14], geeks [15], fitness, hikikomoris [16], lekes zikas [17], otakus [18], junkies [19], jovens nem nens [20], convivem com pais helicópteros, haters e gêneros trans, binários e não binários.

Os pós-irônicos e os pré-sinceros são exemplos mais radicais de como é possível manter uma identidade baseada na recusa de uma posição identitária.

Isso é diferente da atitude contestatória, como a geração X, que colocavam-se contrários a uma ordem instituída. Para o tipo de contestação, tradicionalmente associada com a juventude, desde o romantismo do século XIX até os jovens libertários franceses de 1968, supõe-se um movimento reativo contra a ordem instituída, mas que procura direta ou indiretamente criar uma nova ordem.

Para a geração digital trata-se de uma indeterminação que não é mudança de determinações simbólicas, mas a suposição de que sua opinião e sua atitude são muito valiosas. Portanto a indeterminação, o adiamento de uma tomada de posição torna-se um valor em si mesmo. Daí a importância da autodefinição e da autodeclaração como critérios de reconhecimento mais do que o desejo de ser reconhecido pelos critérios e pelos termos do outro.

Em meio a uma grande profusão de formas de vida definidas pela indeterminação torna-se crucial o reconhecimento de que qual dentre elas constituem realmente experiências produtivas de indeterminação e quais são apenas negações assistemáticas das tradicionais determinações simbólicas de formas de vida tradicionais.

O sofrimento por déficit de experiências produtivas de indeterminação pode aparecer em modalidades indiscerníveis de estranhamento com o próprio corpo, com as expectativas sociais ou com seus papéis codificados.

Papéis sociais fluidos, identidades flexíveis, promessas de renovação indefinida de carreiras, de modalidade de amor ou de desejo tornam-se assim prisioneiras de uma vida em permanente adiamento e indefinição.

A expectativa de que o início de um percurso de engajamento, profissional, desejante ou discursivo torna-se assim não apenas uma preparação, mas uma forma de vida permanente. O prolongamento da adolescência, o retorno a práticas juvenis (adultescentes), assim como a terceira idade produtiva são formas de vida marcadas pelo adiamento de compromissos e apostas de médio prazo. Elas criam uma forma de vida que não é mais a recusa reativa de determinações simbólicas pré-constituídas, mas assunção ativa da indeterminação como meio de vida.

A ideia de que em outra paisagem em outra cultura, ou subcultura uma nova vida é possível é uma das narrativas mais comuns do sofrimento por déficit de experiências produtivas de indeterminação.

Começar de novo, começar em uma nova língua, em uma nova cultura é a promessa de que é possível despir-se das atribuições e descaminhos que inviabilizaram certa forma de vida.

Tornar-se outro, como o bovarismo inspirado pela esposa que sonhava com um novo amor, generalizou-se como uma espécie de normalopatia.

A crise desta forma de sofrimento frequentemente é vivida como aparição inesperada de uma determinação simbólica ou real.

Uma mulher que adia sua decisão sobre tornar-se ou não mãe pode ser surpreendida pela chegada de uma idade limite na qual a sua decisão e a renovação do estado de alternativas possíveis torna-se irrealizável. Este momento é vivido com intensa e disruptiva angústia, não apenas como uma dificuldade conflitiva, mas como o fracasso de uma determinada forma de vida.

Saber onde estão tais experiências produtivas de indeterminação, como produzí-las, artificial ou naturalmente, constitui os enigmas contemporâneos sobre a contingencia de nossas identidades, o ponto no qual nossos corpos resistem a plasticidade indefinida de formas, o momento no qual nosso desejo resiste a se renovar, o momento no qual a indeterminação revela-se como liberdade positiva e real.

REFERÊNCIAS

[1] Dunker, C.I.L. (2015) Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma. São Paulo: Boitempo.

[2] Safatle, V. (2016) Circuitos do Afeto. Belo Horizonte: Autêntica.

[3] Souza, J. (2010) Os Batalhadores Brasileiros. Belo Horizonte: UFMG.

[4] Bourdieu, P. (2006) A Distinção. São Paulo. Edusp.

[5] Bauman, Z. (2015) Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

[6] Kehl, M.R. (2015) O Tempo e o Cão. São Paulo Boitempo.

[7] Dunker, C.I.L. (2017) Reinvenção da Intimidade. São Paulo: Ubu.

[8] Fonseca, G. (2015) O Valor do Amanhã. Rio de Janeiro: Rocco.

[9] Pessoas que cultivam uma atitude de contracultura, incluindo gostos musicais exclusivos, misturando signos de pertinências culturais distintas ao modo de um caldeirão (melting pot), possivelmente jovens brancos de classe média que procuravam imitar o estilo dos músicos de jazz nos anos pós-guerra.

[10] Diminutivo de “independent”, pessoas que se apresentam como realizadores não institucionalizados e cultivam a originalidade e autenticidade.

[11] Jovens que praticam uma forma de vida baseada em baixo consumo, autossubsistência e ligação com a natureza.

[12] Pessoas que não consomem alimentos de origem animal, por motivos éticos, políticos ou morais.

[13] Alternativos; pessoas que praticam modos de vestir-se e alimentar-se que contrariam os consensos supostos e recomendados.

[14] Playboys, pessoas que dedicam-se a estilos de consumo qualificado, ostentação de signos de luxo e de pertinência de classe.

[15] Aficcionados por séries e vídeo games capazes de integrar em suas vidas crenças e práticas dos personagens que admiram, ao modo de cosplays (imitadores que se vestem como personagens).

[16] Jovens japoneses que praticam uma forma de vida recolhida, sem muito contato com estrangeiros e alheios aos ideais dominantes.

[17] Jovens que cultivam o estilo funk na periferia das grandes metrópoles brasileiras.

[18] Jovens que têm afinidades com estilos orientais de vida e de consumo.

[19] Consumidores de drogas.

[20] Jovens que não trabalham nem estudam ou tem qualquer delineamento autodeclarado para suas vidas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2021/01/08/identidades-fluidas-e-formas-de-sofrimento-no-brasil-digital.htm