A invenção milenar que deu origem aos jogos de tabuleiro atuais


William Park – BBC Future

16/05/2021 17h42Atualizada em 16/05/2021 18h16

Ser capaz de gerar números aleatórios é uma ideia complexa baseada em uma invenção simples: o dado, que permitiu criar uma série de jogos.

À medida que a fogueira esmorece, uma família pega os restos de seu banquete, revirando os ossos em busca de qualquer sobra de carne. É cerca de 3.000 a.C. em Skara Brae, um pequeno povoado neolítico na costa oeste do arquipélago de Orkney, na Escócia.

Essas pessoas levam uma vida confortável — e têm tempo para se divertir. Satisfeitos após o jantar, reservam um momento para se entreter.

Um dos membros da família encontra um osso de articulação — nodoso, irregular, do tamanho da unha do polegar — e o joga pela sala. Outra pessoa reúne mais alguns e os empilha em uma torre. Logo, as regras são anunciadas: marca ponto quem lançar o osso mais próximo de um alvo, acertá-lo em uma xícara ou derrubar a torre de seu adversário.

Os jogos modernos são todos baseados na mesma ideia. Há milênios lançamos objetos por aí para nos divertirmos.

Esta família de Skara Brae não foi a primeira a jogar usando ossos — temos exemplos de jogos deste tipo ao longo da história. Mas o que eles fazem a seguir não tem precedentes.

Eles numeraram os lados dos ossos com pontos.

Se você entrasse nesta casa e vasculhasse os pertences da família enquanto eles dormiam, seus objetos poderiam ser divididos em dois lotes: artefatos cujo propósito nós conhecemos, e coisas que não identificamos.

Na pilha “não identificada”, estão objetos estranhos — bolas lisas de pedra entalhada, por exemplo, que talvez fossem armas ou símbolos de status, e várias outras pedras decoradas que poderiam ser “bens pessoais valiosos”, escreve Antonia Thomas, arqueóloga da University of the Highlands and Islands, no Reino Unido.

Do lado “conhecido”, estariam copos esculpidos de madeira, peças de cerâmica — e os ossos numerados.

Estes ossos são dados de 5 mil anos cujo design e propósito permaneceram praticamente idênticos até hoje. Uma pessoa moderna saberia imediatamente como usá-los.

Embora os ossos da articulação pudessem proporcionar diversão por si só, numerar seus lados criou um novo mundo de possibilidades de jogos. Os dados são os geradores originais dos números aleatórios — eles criaram a probabilidade.

Os dados são peculiarmente universais. Com frequência, da Europa à Ásia, seus lados são numerados com pequenas sementes, em vez de inscrições, assim como os encontrados em Skara Brae. Os dados com sementes permaneceram inalterados por milênios.

Ninguém sabe de onde e de quando vem o costume de numerar os lados opostos de um dado cúbico de modo que somem sete.

Irving Finkel, um filólogo e especialista em língua e cultura mesopotâmica do Museu Britânico, em Londres, sugere que as pessoas podem ter pensado que isso tornava os dados “justos”, embora não haja nenhuma razão científica para tal.

Qualquer que seja a lógica, a tradição permaneceu, e quase todos os exemplos de dados de seis lados ao longo da história têm faces opostas que somam sete.

Os primeiros dados, muito provavelmente, não tinham seis lados. Na verdade, os dados de ossos de articulação podem ter sido lançados para responder a perguntas de “sim” e “não” antes de serem numerados, com os dois lados maiores e mais planos fornecendo o resultado, diz Finkel. Um lado pode ter sido esfregado com carvão, de modo que uma face era preta e a outra, branca.

Há outros candidatos a dados mais antigos: varas de arremesso de dois lados foram usadas no Egito Antigo aproximadamente na mesma época, “o que precedeu em muito a fabricação de dados de seis lados”, diz Finkel, e pirâmides de quatro lados foram usadas no Oriente Médio.

Saber exatamente quais jogos de dados vieram primeiro é impossível, diz Ulrich Schädler, diretor do Museu Suíço de Jogos, em La Tour-de-Peilz, a menos que os materiais fossem esculpidos em pedra ou osso.

Alguns dos primeiros jogos de que temos certeza incluem um chamado “20 casas”, em que os jogadores disputam uma “corrida” em um tabuleiro com 20 casas — algumas das quais são seguras, e outras compartilhadas com o adversário, dando a eles a chance de te enviar de volta para o início. O jogo foi comparado ao gamão.

Versões deste jogo foram encontradas no Norte da África, no Oriente Médio e no subcontinente indiano — o exemplo mais notável é o Jogo Real de Ur, em homenagem à antiga cidade da Mesopotâmia (atual Iraque).

O tabuleiro de Ur, composto por um mosaico feito de conchas do mar e jogado com um dado em forma de pirâmide, data de meados do terceiro milênio a.C. e está em exibição no British Museum. Foi Finkel quem descobriu suas regras.

Outro jogo chamado Senet era jogado no Egito por volta da mesma época. Vários tabuleiros bem preservados foram encontrados em tumbas de faraós e retratados em pinturas na parede.

Mas Schädler diz que jogos como esse não eram jogados apenas pela realeza. O tabuleiro de Ur é requintado, mas versões simples eram riscadas na pedra ou até mesmo na terra.

Segundo ele, é difícil saber como as primeiras versões desses jogos se desenvolveram, uma vez que eram jogados no chão com pedras, então os tabuleiros feitos para os ricos deixados em câmaras funerárias e as ilustrações nas paredes fornecem os melhores materiais para análise.

“Coisas como essa só aparecem em altas civilizações antigas como Egito, Ur e Vale do Indo [próximo ao Paquistão e Afeganistão]”, diz Schädler.

Exemplos anteriores ao terceiro milênio a.C. se tornam controversos. Há pedras esculpidas com longas filas de buracos encontradas na África, nas Arábias e Oriente Médio, algumas das quais datam de 7.000 a.C. e 9.000 a.C.

Esses buracos foram comparados a um jogo africano moderno chamado Mancala, no qual dois jogadores disputam as sementes ou pedrinhas entre os buracos.

É impossível dizer se esses buracos são uma versão antiga da Mancala, uma vez que as peças do jogo não permanecem. Schädler não está convencido:

“Entre esses tabuleiros e os primeiros jogos de tabuleiro reais, haveria 3,5 mil anos sem nada. Isso é altamente improvável”, diz ele.

Mas Finkel acredita que “é mais provável que sejam jogos do que qualquer outra coisa”.

“Alguns dizem que são um tipo de calculadora antiga ou eram usados em rituais. Isso é possível. Mas houve uma escavação em Arad, no sul de Israel, na qual muitas casas tinham um desses tabuleiros planos com orifícios paralelos. Talvez [os moradores] ficassem sentados lá o dia todo fazendo cálculos mas não acredito. Acho que era para se divertir.”

Mas será que surgiu algo entre 7.000 a.C. e 2.500 a.C. para ajudar a desenvolver os jogos — das disputas de pedrinhas na terra até os jogos de tabuleiro que divertiam a realeza?

Arqueólogos sugerem que uma descoberta recente, que data do intervalo destes períodos, seria um jogo de estratégia complexo.

Mas Schädler não está convencido. Chamado de “Cães e Porcos”, seria composto por duas dúzias de peças de pedra diferentes, incluindo algumas pirâmides, porquinhos e cabeças de cachorro. Os artefatos foram encontrados em um túmulo na Turquia que data de cerca de 3.000 a.C.

“No museu, eles colocam [as peças] em um tabuleiro de xadrez”, diz Schädler.

“Esta é uma reação muito típica, mas é prematura por vários motivos. O fato de essas peças serem encontradas juntas em uma sepultura não significa que estavam juntas antes de irem parar na sepultura. Talvez várias pessoas tenham colocado algumas peças na sepultura. Talvez a pessoa enterrada fosse um pedreiro, e esta é apenas uma coleção do tipo de peças que ele produzia. “

Schädler acrescenta que supor que as peças eram jogadas como uma partida de xadrez é um grande salto. Jogos como Senet e Mancala envolvem uma disputa simples. O xadrez tem inovações que levariam milhares de anos para serem desenvolvidas.

Alguns arqueólogos presumem que a Mancala era jogada há milhares de anos com base em buracos encontrados em pedras — mas há poucas evidências disso, e ninguém sabe quais seriam as regras.

Os jogos que sabemos que eram jogados no segundo e terceiro milênio a.C. têm duas coisas em comum: precisavam de dados e eram para dois jogadores.

Dois dos primeiros jogos que conhecemos que não usavam dados são o Go (cujas origens se misturam ao folclore, mas o primeiro tabuleiro data de 150 a.C.) e o xadrez (a partir do século 6 d.C.). O xadrez também trouxe uma inovação — as peças podem fazer movimentos diferentes.

Mas por que demoramos tanto tempo para desapegar dos jogos baseados em dados? Schädler acredita que pode ser porque nossas habilidades matemáticas não eram tão sofisticadas.

“Parece improvável que em 7.000 a.C. eles fossem capazes de desenvolver esse conceito de pensamento matemático abstrato”, avalia.

Schädler sugere ainda que, se a consciência não fosse tão desenvolvida como agora, não poderíamos conceber jogos que não dependessem da sorte.

O psicólogo americano Julian Jaynes popularizou um conceito na década de 1970 de que, até mesmo tão recentemente quanto a Grécia Antiga, as pessoas acreditavam que eram dirigidas por intervenção divina.

A definição de consciência de Jaynes é específica e limitada, diz Andrea Cavanna, neuropsiquiatra da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, e autora de várias críticas às ideias de Jaynes.

Jaynes acreditava que, embora as pessoas fossem capazes de falar, julgar, raciocinar, resolver problemas e fazer muitas das coisas que associamos à inteligência, elas não tinham consciência.

“Ele argumentou que há evidências de tal mentalidade pré-consciente na obra literária mais antiga da cultura ocidental, Ilíada”, afirma Cavanna se referindo ao poema épico da Grécia Antiga de cerca de 1.200 a.C.

“Os seres humanos mencionados em Ilíada são retratados [como] ‘nobres autômatos’ executando ordens divinas.”

Jaynes sugeriu que o cérebro era dividido ao meio, com o hemisfério direito criando alucinações que davam a impressão de uma voz divina.

“Essa ‘mente bicameral’ literalmente colapsa por volta de 1.400-600 a.C”, diz Cavanna. De Odisseia em diante, os personagens literários parecem ter uma consciência que nos é familiar.

As ideias de Jaynes são polêmicas no campo da neurociência, mas “tudo o que sabemos sobre a evolução da consciência em nossa espécie ainda é em sua maioria especulação”, explica Cavanna.

“As perguntas ‘O que é a consciência humana?’ e ‘Como a consciência humana evoluiu?’ estão interligadas e permanecem como um enigma ainda sem resposta.”

Se Jaynes estava certo ao dizer que os humanos, até tão recentemente quanto os gregos antigos, pensavam que não tinham autonomia sobre sua tomada de decisão, talvez seja por isso que eles não conseguiram pensar em um jogo que não dependesse da sorte, diz Schädler.

“À luz dessa teoria, não era possível imaginar uma peça de jogo no tabuleiro com capacidade interna de movimentação. Ela precisava se mover a partir de algo externo — um gerador aleatório.”

O xadrez ganhou os holofotes recentemente com a série O Gambito da Rainha, da Netflix. A produção, estrelada por Anya Taylor-Joy, narra a trajetória de Beth Harmon, uma jovem prodígio no xadrez.

A invenção deste jogo pode ser um marco de quando o pensamento humano mudou? Infelizmente, o xadrez não chegou totalmente formado ao mundo e os primeiros exemplos das regras sugerem que ele ainda dependia da sorte.

O espanhol Libro de los Juegos (“Livro dos Jogos”), de 1283, é um dos primeiros textos sobre jogos e descreve dezenas de maneiras de jogar xadrez, incluindo uma versão para quatro jogadores que exigia dados.

Também não havia menção à rainha, peça mais importante do tabuleiro, no livro. A rainha pode datar de mais tarde ou simplesmente não era usada na Espanha.

“A ascensão da liderança feminina na Europa medieval mudou o poder dessa personagem”, diz Mary Flanagan, autora de Critical Play e professora de estudos de cinema e mídia no Dartmouth College, nos Estados Unidos.

“A mudança em um jogo pode refletir uma mudança nos valores culturais. No caso, o rei costumava ser a peça mais poderosa, e depois foi a rainha.”

As inovações nos jogos podem refletir mais a cultura do que a biologia, acrescenta Flanagan.

Alguns historiadores associam os primeiros jogos aos métodos de adivinhação — ambos os quais pareciam usar tabuleiros, peças e dados.

“Não sabemos realmente qual é o ovo, e qual é a galinha”, diz Schädler.

“Na adivinhação, você precisa de geradores aleatórios. O papel do intérprete é então analisar o resultado aleatório e seu significado divino.”

Flanagan concorda. “Os jogos têm uma ligação com o ocultismo e as práticas folclóricas”, diz ela. “Eles usavam basicamente os mesmos materiais. É fácil ver a relação que as pessoas traçaram entre eventos aleatórios em um tabuleiro e rituais.”

Será então que as pessoas jogavam para encontrar um significado maior?

Os “dados neurofisiológicos oferecem um suporte frágil para uma estrutura bicameral da mente pré-consciente”, diz Cavanna.

“Ao colocar o colapso [da mente] em tempos históricos, ao invés de eras biológicas, Jaynes exagerou um pouco seu caso e se expôs a críticas fundamentadas. Mas isso não diminui seu extenso trabalho e tentativa audaciosa de preencher uma lacuna em nosso conhecimento sobre uma característica fundamental do que nos torna humanos.”

Finkel também é cético. “Se você destruir a fronteira entre [jogos e rituais], pode dizer que qualquer coisa é qualquer coisa. O trabalho [de um jogo] no mundo é nos trazer prazer.”

Gerar aleatoriedade foi essencial para dar início ao jogo estruturado e criar os jogos que qualquer um de nós saberíamos jogar hoje.

Mas descobrir como jogar sem depender da sorte abriu ainda mais possibilidades. Talvez seja só isso, conclui Finkel.

“Os humanos sempre criaram novas maneiras de se divertir.”

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/bbc/2021/05/16/a-invencao-milenar-que-deu-origem-aos-jogos-de-tabuleiro-atuais.htm